15 Sexta-feira, 1º de abril de 2011 “O dia da mentira” eitado no sofá-cama da sala de televisão da casa dos pais, onde antigamente era o quarto de sua irmã, Marcos relembra os momentos vividos há poucas horas. As lembranças ainda lhe trazem um sorriso aos lábios: “hum, ainda estou bom na coisa”, pensa com indisfarçável orgulho. “Essa noite eu estava inspirado. Fazia tempo que não tinha uma performance dessas. Sandra, Sandrinha, que delícia! Ainda mais bonita do que eu imaginava. Tão ardente, fogosa... Mineira quente!”. Ele fecha os olhos. “Acho que ainda aguento mais uma, será?”. Sandrinha veio por cima, removeu todo o seu peso e a Marcos coube somente curtir o prazer. Fecha os olhos, sente-se dentro dela, é quente, gostoso, sexy. Lembra quando ela gritou da maneira certa, nem muito alto para parecer falso, nem muito baixo porque perdia a graça: – “Nossa, meu Deus, que delícia… você é muito gostoso... não aguento mais...” – e disparou a rir, numa gargalhada deliciosa, não um riso de chacota, mas entremeado com suspiros, palavras... “delícia, tesão, gostoso”. Nunca havia experimentado algo assim: a parceira dando uma gargalhada bem na hora H. O riso ainda ecoava em sua cabeça. Ainda sente os efeitos da emoção do encontro, a leve palpitação, o suor das mãos, “será que ela vai mesmo gostar de mim?”, o primeiro olhar. Está indeciso entre tentar o prazer solitário antes de dormir ou simplesmente dormir. Porém, dormir é impossível, ouve a gargalhada, relembra tam16 bém o momento do seu primeiro orgasmo da noite. Naquela hora lhe passou pela cabeça perguntar se poderia ou não, mas Sandra era tão habilidosa com os lábios que seria quase inconcebível que ela não o deixasse terminar da maneira certa. Além do mais, “hoje em dia qualquer garota semi-adolescente já faz isso, é uma coisa básica, algo como raspar os pelos pubianos, ninguém em sã consciência e com menos de 70 anos deixa o mato crescer ao léu”. Sente que caiu em uma armadilha do seu inconsciente quando lembra que, em breve, a sua Valéria entraria na adolescência. “E agora, hein?”. Balança a cabeça, como se quisesse espantar aquele pensamento, e volta a pensar em Sandra, que não desapontou e continuou as carícias mesmo depois de passado o turbilhão do orgasmo dele. Marcos não fez feio, pelo contrário, mostrou sua força de macho e quase nem perdeu a pressão. No máximo, um pequeno momento de insensibilidade, mas os lábios daquela deusa da luxúria foram mais fortes. Ela não se mostrou surpresa, mas com certeza deve ter ficado impressionada. Afinal, ele estava com 42 anos e não era sempre que conseguia duas performances em sequência. Nos bons tempos, três ou quatro, sem intervalo comercial. Era o que ele considerava básico. Mas isso foi antes e agora a idade estava chegando. “Preciso encontrar umas ex-namoradas da época dos meus 20 anos para atestarem em cartório que eu realmente fazia aquilo. Ninguém acredita”. Mesmo com a mulher, às vezes, ele ainda mostra a velha forma, mas hoje em dia isso era um fato cada vez mais raro. “Essa noite voltei no tempo” pensa, contente consigo mesmo. Em quatro horas fez com aquela ninfa tudo o que demorou anos para fazer com Vanessa e 17 ainda foi muito além. Vanessa tinha certos tabus e limites. Ele tentou arduamente “extrapolar” durante os primeiros anos depois de casado. Uma vez, uma única vez, quando ela estava muito bêbada ele pensou que iria conseguir. Mas Vanessa “bêbada” significava uma taça de champanhe, no máximo duas, e assim que ele fez menção de tentar entrar no lugar “errado” ela pulou logo pra cima, e pronto. Acendeu a luz, fez cara de choro, falou que já havia dito “mil vezes que ali não era lugar para fazer isso, que tinha lido em várias revistas que isso a traria problemas no futuro, que existiam doenças, que era coisa de gay… blá, blá, blá”. No início do falatório, ele se preocupava mais em tentar abafar para poder ao menos continuar a transa, mas ela não parou mais e a essa altura ele já tinha até perdido o “ímpeto”. Foi a última vez, e preferiu não insistir mais. Mas Sandra, não. Ela obviamente não tinha tabus. Não que tenha sido fácil. Ainda bem. Não queria transar com uma mulher que desse o bumbum logo de cara para qualquer um. Ele sabe que ela havia feito uma concessão especialmente para ele por puro tesão – aquilo era algo que, com certeza, ela somente fazia com namorados muito especiais e que mesmo assim eles deveriam levar anos para conseguir. Mas ele, não. Conseguiu na mesma noite graças ao seu charme e também às horas perdidas no Facebook. De fato, ele a seduziu lá no chat. O primeiro beijo – na verdade, apenas uma bitoquinha – na choperia Redentor da Savassi, a área do agito noturno de Belo Horizonte, foi apenas uma extensão dos bate-papos no Face. Uma espécie de prolongamento físico dessas conversas, já que mesmo no chat por vezes haviam trocado “beijos virtuais”. Tinham falado de tudo: da vida, 18 do presente, do passado, da economia, dado um jeito no Brasil, do trânsito infernal da capital mineira e, nos últimos dias, o assunto terminava sempre com um papo sexual, mas nada muito desbocado. Apenas o suficiente para entender que ela era uma jovem que “curtia muito de tudo, mas não gostava de tomar iniciativas”, que “gostava de fazer com a luz acesa”, que tinha tido “relativamente poucos parceiros”... Claro, ficava a dúvida do que “relativamente” significava na prática. “No meu tempo, a expressão ‘poucos parceiros’ significava, no máximo, três; hoje em dia ‘poucos’ talvez seja mais que cinco e menos que dez. Ou será menos de quinze?”. Marcos sabia como proceder e o fez com muito cuidado e calma. Foi difícil, mas ela curtiu. “E muito, a danada! Será que ela gozou? Talvez não, já que não deu a gargalhada. Será que a gargalhada é para todo orgasmo ou só para os especiais? Porque ela só gargalhou aquela primeira vez. Mas ela pareceu ter tido mais orgasmos.” Não sabia. “Também não dá pra ficar perguntando direto. ‘E aí, terminou? Foi bom pra você? Teve orgasmo? Teve? E agora, teve?’ Foda-se. Eu gozei umas três ou quatro vezes.” Tenta contar. “Vamos ver. Teve a primeira. E a especial, lá trás . Ah, tá, claro, gozei com ela embaixo, o clássico papai e mamãe não pode faltar, senão acho que nem conta como transa. Essa foi a número dois, inclusive, estou trocando a ordem. Ah, teve a no estilo cachorrinho. Ali ela teve um orgasmo! Porque se me lembro bem, ali teve uma minigargalhada. Teve sim. Garanto que teve. Acho que teve. Engraçado que só aí que notei que ela tinha uma tatuagem no ombro direito. Seria aquela a fadinha do Peter Pan? Nunca vou lembrar o nome. Putz, é Sininho! Como diabos lembrei disso? Tenho 19 muito lixo na cabeça. E quando ela estava por baixo deu um suspiro mais forte, acho que foi um orgasmo também. Um gozo leve. Um gozinho. Mulher tem isso, gozo pequeno. Um espasmo. Meio que uma rápida cãibra, só que gostosa. Cãibra gostosa? Isso existe? Como vou saber? Vanessa às vezes me fala que teve um gozo pequeno, deve ter sido um desses, então… merda. Perdi a conta. Onde eu estava? Peraí, deixa eu contar de novo. Teve a do…” Mas interrompe a contagem e começa a pensar em Vanessa. Os pensamentos seguem sem controle e ele agora vê a filha mais velha fazendo sexo oral com um homem. “Mato o filho da puta!”. Ele beija Sandra mas, de repente, é Vanessa quem beija Sandra, as duas estão nuas. “Raios, vou perder a ‘tradição de sábado de manhã’”. Marcos está ao lado do seu pai desmaiado na calçada; não estava desmaiado, estava apenas apático, incomunicável, como um demente bêbado. Ouve a gargalhada de Sandra enquanto tenta acordar seu pai que estava desmaiado, desmaiado não, apenas apático, incomunicável… Finalmente, cai no sono profundo e tudo fica escuro e, por bem ou por mal, não se ouve nenhuma risada. * * * Jarvis Lindemann trabalha rápida e eficazmente. On-line, confere os recebimentos do dia anterior. Usando o Excel localiza os nomes dos clientes, confere que o pagamento foi efetuado e atualiza sua classificação na tabela. A escala varia de 0 a 3. Se for o primeiro pagamento, passa para o número 1, se segundo, número 2. Os que 20 chegam ao número 3 são trocados para outra planilha intitulada “clientes encerrados”. Assim, ele tem uma rápida visão do estado atual, bem como dos pagamentos futuros. Faz esse trabalho diariamente, fechando os clientes um a um. É um trabalho monótono, pensou várias vezes em fazer uma rotina de conciliação automática, mas acha melhor assim. O que não deixa de ser um tanto quanto contraditório, visto sua paixão por eficiência em todas as áreas. Na verdade, não quer deixar nada ao acaso e gosta de olhar os nomes, fechar cada cliente individualmente. Efetua a transferência do dia, deixando a conta do PayPal livre para o pagamento de amanhã. Dessa forma, também fica certo de identificar o cliente que porventura faça uma queixa. Nunca aconteceu. Ninguém nunca se queixou. Alguns tentam negociar. Nunca negocia. É patético que eles tentem negociar. “Fechamos um negócio, não há como voltar atrás, quer eles queiram quer não. É a vida. Você faz uma burrice, não tem como voltar atrás. As pessoas estão tontas, pulam numa piscina rasa, ou em um rio com uma pedra escondida.” Tinha lido isso no livro do Marcelo Rubens Paiva – que a maior causa de pessoas irem parar numa cadeira de rodas é essa: pular em piscina rasa. “A gente vê o sujeito entrevado, todo esquisito numa cadeira de rodas e pensa que é porque ele se acidentou de carro, algo sério, que nada, o cara tava tonto e pulou numa piscina sem água. Aposto que o cara daria de tudo para voltar no tempo, não ter dado aquele pulo. Mas deu. Não tem jeito de voltar. Meus clientes se arrependem, mas é tarde. Agora é pagar. E todos sempre pagam. Ficam aborrecidos, mas pagam. Se sentem enganados, mas pagam. Provavelmente, alguns 21 mudam para melhor. Aliás, depois dessa, todos devem mudar para melhor. Quanto a negociar, nunca negocio. Se for para negociar, talvez o Daniel negociasse. Mas eu não. Meu negócio na empresa é cuidar da receita que chega todo dia. Transferir para os bancos. Fazer contratos com empresas on-line, pagar os meus fornecedores.” É fechamento de mês. Entra no vWorker, um site de trabalhos on-line. Como eles existem vários: Odesk, Elance, Freelance, Guru. O empregador entra nesses sites, especifica o tipo de trabalho que precisa ser feito. Algo virtual ou possível de ser feito à distância. Um trabalho de tradução de texto, um website de internet, até mesmo trabalhos de contabilidade, programas de marketing. Põe o trabalho no leilão. Os trabalhadores, então, se candidatam a resolver o problema e especificam suas condições de preço e entrega. É mundial. Tudo em dólar, mas os trabalhadores estão na China, nos Estados Unidos, no Peru, em países que a gente nem sabe onde fica. Não necessariamente o empregador escolhe o mais barato. Pode escolher aquele que parece ter o melhor currículo ou já ter feito projetos semelhantes ou por conta da pontuação no site. Ou uma combinação de tudo isso. Jarvis sempre trabalha com umas das quatro firmas que conhece – dependendo do tipo de trabalho que foi contratado. “Hora de pagar” e clica no ícone dentro do vWorker indicando que o trabalho foi concluído com satisfação. Em, no máximo, dois dias, a empresa recebe o dinheiro dela. Jarvis não tem obrigação de saber nada dessa empresa. Se ela está pagando seus impostos em dia, se não está. Não tem nada a ver com ela. Melhor ainda, ele está pagando para a vWorker, não para esse contratado. Ele liquida a fatura 22 com a vWorker, que paga o contratado. A vWorker pega um percentual para si. Varia de 2 a 5% do preço total da empreitada. Apesar da perda de receita, as duas empresas preferem fazer dessa forma, com esse fator de isolação entre si. Não há nada ligando as duas empresas. Se Jarvis for questionado, nem sabe quem é. É tudo virtual. Os eventuais problemas da empresa contratada não o afligem. Por isso mantém tudo muito bem separado. “Bem, a contabilidade do mês agora está fechada. Sinal verde para iniciarmos o mês seguinte. É a parte mais chata. O início do mês. Esse mês se inicia no dia 3 de abril. Muita coisa pra fazer.” Mas é o Daniel quem cuida dessa parte. Ele teria de fazer isso no domingo. “Agora vou dormir”, pensa Jarvis. 23 Sábado, 2 de abril de 2011 “Viagem à Ásia” ábado de manhã em Belo Horizonte, Marcos acorda ao som de uma maldita britadeira da construção ao lado. Nos últimos oito, dez anos, o prédio dos pais, anteriormente isolado na Rua Fernandes Tourinho, recebeu a amaldiçoada companhia de outros prédios. Isso, além de transformar a piscina do prédio numa experiência digna da Sibéria, contribuiu também para que ninguém conseguisse dormir depois das 7 da manhã nos dias de semana. O torturante som de martelos, britadeiras, serras elétricas e outros equipamentos barulhentos é constante. Quando a economia está mais devagar, as obras geralmente param durante o final de semana. Mas nos dias atuais, com a economia aquecida, os operários trabalham aos sábados, domingos, feriados e dias santos. Por causa das reclamações, felizmente passaram a iniciar mais tarde nesses dias. “E santo dia esse, pleno sábado, ser acordado às 9 da manhã com essa barulheira… ninguém merece…” é o primeiro pensamento de Marcos, logo interrompido com a lembrança do sucesso da noite anterior. “É, dos males o menor” e continua esticado no sofá-cama, ainda saboreando as memórias ainda vívidas na mente e no corpo. Ontem, sabendo que não iria para casa, nem precisou se lavar demais. “Essa parte é sempre a mais complicada, o ‘chegar em casa’. Sempre corre o risco de a mulher notar um perfume diferente. Ou, pior, sentir o ‘cheiro de motel’”. Se bem que ontem à noite nem gastar com 24 motel ele precisou: Sandra disse que a agência tinha lhe dado uma noite gratuita no apart-hotel mantido pela empresa. Era uma coisa normal, ficava mais barato para a agência de modelos manter esse apartamento para as garotas que, como ela, vinham do interior fazer provas fotográficas do que ter que pagar hotel. Isso tudo ela já tinha lhe dito no Facebook, inclusive que o apart-hotel ficava ali mesmo, na Savassi. O problema era que ela havia tentado com essa agência faz tempo, mas não havia tido resposta. Marcos chegou até a pensar em ir a Montes Claros encontrá-la – as conversas estavam boas demais para esperar muito –, quando Sandra disse que, finalmente, tinha chegado uma resposta positiva. Foi como um presente dos céus. Ela disse que viria para fazer um teste para uma nova marca de maquiagens. Ou algo do gênero. “Quem se importa com esses detalhes?”. Ele iria dar uma saída para beber com “a turma” e depois dormiria na casa dos pais: “Você sabe, hoje em dia tem a lei seca, e com lei ou sem lei dirigir bêbado é sempre algo que temos que evitar”. Como essas saídas eram algo normal, Vanessa não tinha nem como desconfiar. Tudo se encaixando perfeitamente, o primeiro discreto beijinho no Redentor veio rápido, a conversa fluindo bem. Marcaram bem cedo e após uma hora de chope e conversa, o Redentor começou a ficar perigoso porque era perto da casa dos pais e ele era freqüentador assíduo. A escolha do lugar havia sido um risco calculado. Optou pelo bar movimentado. A alternativa seria tentar um lugar mais remoto, mas Marcos tinha certeza que se saísse muito fora do seu eixo, aí sim, seria visto por algum conhecido. “Dizem que as coisas mais escondidas estão sempre bem à vista”. Até aquele 25 momento, se alguém os encontrasse ainda rolava o papo de que ela era “namorada de um amigo que estava para chegar”. Mas a conversa começou a esfriar na mesma proporção que o clima começou a esquentar: toques furtivos de mão, olhares... Mais cinco minutos e o tal papo de “namorada de amigo” não colaria mais. Ele pediu a conta, pagou sem esperar pelo troco e saiu de lá em ritmo acelerado. O apart-hotel ficava no mesmo quarteirão, em 15 minutos estavam no quarto, isso porque o check-in foi demorado. Devia ser 9h30 quando saíram do Redentor, mas só foi tocar a campainha para acordar o vigia do prédio dos pais depois das 2 da manhã. “Uma noite perfeita, mas isso foi ontem. Hoje é outro dia. Maldita marreta, malditas construções”. Levanta, está suado, o sofá-cama é muito felpudo para um dia quente como esse. Vai pro banheiro, toma um ducha, veste uma roupa antiga que mantém “para ocasiões como essas”. Olha-se no espelho, a camisa da época dos 30 e poucos anos deixa entrever uma barriguinha que começa a evoluir para “Barriga, com B maiúsculo”. Os cabelos grisalhos não importam: “me dão um ar de George Clooney”. Lembrou a si mesmo que todo careca acha que a falta de cabelo lhe faz parecer com o Bruce Willis, quando, na verdade, a careca apenas o faz ficar feio e 10 anos mais velho. Deve ser o mesmo caso com ele – os cabelos grisalhos na têmpora provavelmente não o fazem parecido com George Clooney coisa nenhuma. “Mas, convenhamos, cabelo grisalho ainda é melhor que a falta de cabelo, exceto quando os cabelos grisalhos estão localizados mais ao sul do Equador.” Atualmente, a penugem naquela área tem 26 sido particularmente atingida por essa súbita alteração de cor, sem contar que o cabelo grisalho aparenta ter uma textura, digamos, mais “dura” do que os cabelos normais. “Será que existe uma tintura própria? E será que o George Clooney, todo bonitão, fica tão bonito assim pelado com a pentelhada grisalha?” Pelo sim, pelo não, há muito tempo adotou um corte bem rente na região, além de cortar cuidadosamente (e apesar de todo o cuidado acidentes acontecem) os eventuais pentelhos brancos rente à raiz. No torso, começam a aparecer uns peitinhos estranhos, em inglês chamados de “man-tits”, peitos de homem. Coisa de velho. “Tenho de reiniciar um programa de treinamento urgente. Urgentíssimo.” Há uns seis anos entrou numa de cuidar do corpo utilizando o método “Body for Life”. Funcionou e aderiu ao método por quase dois anos. Nunca esteve tão em forma, mas não é apenas um método. É um estilo de vida. “O desinfeliz vive pra treinar, pra comer certo, pra dormir bem. O famigerado ‘vive pra malhar e não malhar pra viver’”. Vanessa até gostou do resultado na cama, não por conta da performance, mas sim porque ele perdeu peso e, o mais importante, parou de roncar. Sexualmente, melhorou apenas a condição física. De resto a sua notória capacidade de manter a ereção por duas, três transas talvez tenha até piorado. Quem sabe era porque os exercícios do dia o deixavam tão cansado que um, dois orgasmos já o faziam cair no sono pesado daqueles de só acordar no dia seguinte. Mas a pressão dos amigos, que não o encontravam mais nas saídas, da Vanessa e suas obrigações sociais foram mais fortes. Pouco a pouco foi cedendo, e hoje estava novamente acima do peso: 80Kg, com 1,78m. Não era 27 exatamente um desastre, mas começava a se sentir envergonhado de tirar a camisa no clube. Vanessa, por outro lado, parecia só melhorar com a idade. Quando se conheceram, em 1990, Vanessa tinha acabado de completar 18 anos. Era loura, cabelos lisos e longos. Acima de tudo, grandes e curiosos olhos verdes, que chamavam a atenção por onde passasse. Era uma mignon, tipo 1,58m, com tudo duríssimo no lugar. Os peitos eram tamanho A, a bunda era pequena e arrebitada, desafiando a gravidade. Quando iniciou a faculdade, passou a trabalhar como free-lancer, dando aulas de aeróbica para empresas. Fazia também alguns trabalhos como modelo em exposições e convenções. Era virgem e inexperiente. Hoje, mais que o dobro do tempo depois, e tendo gerado duas filhas, Vanessa não tem mais a virgindade, a inexperiência e nem faz mais trabalhos free-lancer. Tirando isso, o resto da descrição ainda lhe serve. Se antes, aos 18, ela era uma nota 8 fortíssima (considerando que nota 10 seriam modelos altíssimas de 17, 18 anos e que faturam milhões por desfile) hoje ela é uma nota 9, ou talvez 9,5. Isso porque a competição, literalmente, caiu por terra. As que não caíram, entraram na faca. Com resultados às vezes estranhos. A pele do rosto muito esticada, mas enrugada no pescoço. Ou então eram as pernas, os culotes. Ou as mãos. Algo sempre denunciava que se tratava de uma intervenção artificial. Mas Vanessa estava acima disso. Ainda tinha uma carinha de 25, 30 anos, no máximo, o que às vezes lhe trazia até problemas no Buffet Vanessa. Frequentemente, clientes novos não acreditavam que aquela menininha de aparentes 25, 28 anos pudesse ser a Vanessa, que 28 dava nome ao bufê ou que ela tivesse toda a experiência que dizia ter. Uma conversa rápida com o cliente, um sorriso e tudo estava resolvido. “Vanessa é a pessoa mais sociável que já inventaram na face da Terra”, costuma dizer Marcos. De fato, a simpatia e o carisma de Vanessa eram legendários no bairro Floresta, onde ela cresceu e fez questão de morar após o casamento. Simpatia não só da boca pra fora, mas algo que podia ser comprovado quase que cientificamente: prova número 1 era o bufê que começou do absoluto nada, simplesmente com Vanessa organizando festas de aniversário para amigos, familiares e colegas da Faculdade de Comunicação da UFMG. Investimento inicial de zero reais; prova número 2 é que, mesmo depois do bufê estar conhecido, durante os quatro meses que Vanessa ficou ausente da empresa logo após o nascimento de Verônica, em 2002, o faturamento praticamente caiu pela metade, voltando rapidamente aos níveis normais assim que ela retornou ao trabalho. “A comida do bufê é ótima, o serviço impecável, o local excelente. Mas o diferencial todo mundo sabe: é a dona”, dizia Marcos. De frente para o espelho, se examinava: “Um dia desses, ela me larga. Vai achar um cara novo, rico e com um cajado enorme e, aí, como eu fico? Ainda mais agora, que já não estou lá essas coisas… Se bem que ontem eu mostrei que ainda sou ‘o bicho’. Ou então ela não me deixa, mas eu caio fulminado por um ataque cardíaco. Tenho de me cuidar. Toma vergonha, seu viado! Põe essa barriga pra correr!” Sai do banheiro, a mãe o espera com o café da manhã na mesa. Já são quase 10 horas, come pouco porque sabe que ao meio-dia, 29 pontualmente, será servido o almoço. A comida, baseada numa dieta de pouco sal, pouca gordura, poucos temperos, pouco tudo, já que o pai é diabético, com problemas de pressão, coração e qualquer outro “ão” que possa existir, provavelmente não será aquela apetitosa comida de sábado de outrora. “Foda-se, hoje é um sábado glorioso.” Pela porta da sacada, vê o sol lá fora, o céu sem nuvens. E põe-se a conversar com a mãe sobre o trabalho, o Brasil, as meninas, o último desastre natural na Conchinchina, a Dilma... Realmente, um sábado glorioso apesar do barulho da britadeira que continua incessante, do lado de fora. * * * Daniel João Cotto, o Dadá, abre os olhos com preguiça. Consulta o relógio de cabeceira, que já passa das 13 horas. O sol entra pela janela, porque ele esqueceu de fechar as persianas na noite anterior, atingindo-lhe diretamente o rosto. O enorme aposento que ocupa todo o subsolo da casa é dividido em duas partes por uma imensa estante. De um lado, o quarto de dormir. Do outro, o escritório da empresa. A divisão não é apenas física: é também organizacional. No lado dormitório, a cama “king size” está em total desalinho; latas de Coca-Cola, cerveja e garrafas de suco se empilham na cesta de lixo; papéis de assoar o nariz encontram-se espalhados, com algo grudento neles. O projetor no teto está aceso e a parede branca reflete um filme pornô, desses sem história, sem maquiagem, estilo amador. Não há som. Não se vê nenhuma TV, DVD ou qualquer 30 outro aparelho do gênero. O que é, de certa forma, desconcertante, sabendo-se que Dadá é fanático por filmes. Até mesmo aqueles com história. Geralmente só assistia a filmes recentes, ainda não lançados no país, e desde que não tivessem a Angelina Jolie, que “em todo filme passa o tempo todo fazendo caras e bocas tentando parecer sexy”. Ao lado da cama, um laptop com controle remoto e teclado sem fio eram os únicos aparelhos de que precisava para seu entretenimento. “Apesar de ser sábado, o trabalho não para”, pensa Daniel. Olha novamente para o sol lá fora e se consola imaginando que “vai ver, tá frio pacas”. Mira a parede azul embaixo da escada. Tenta entrever qualquer tipo de desalinho, fresta que denunciaria a porta falsa que criara. Há dois anos fazia isso diariamente. Mesmo resultado de sempre: impossível de se perceber algo. Levanta de um salto, vai ao banheiro fazer a higiene matinal. Ouve os passos de sua mãe no piso superior. Não apenas imagina que é sua mãe, na verdade SABE que é sua mãe. Conhece o seu andar. “Incrível como a gente, sem perceber, grava certas coisas”, pensa. Anos atrás, durante as férias, trabalhou como estagiário numa firma. Com dois dias, entendeu tudo o que tinha de fazer, e, no processo, entendeu também que seu chefe era um idiota completo. Com uma semana, sabia mais que o chefe, quiçá do que o chefe do chefe. Quando não tinha mais nada a aprender desinteressou-se e passou o resto do tempo no MSN. De longe, ouvia o andar do chefe e, sem precisar se virar, imediatamente abria uma grande planilha do Excel. Tinha de desenvolver algo idiótico, mas que o chefe e o chefe do chefe achavam ser grande 31 coisa. Com duas horas de busca no Google, já tinha encontrado um programa com código fonte e manual para o usuário que atendia a 90% dos requisitos. Em uma semana de trabalho intenso fez todas as modificações, inclusive criando o relatório que deveria ser a peçachave de todo o programa, mas o imbecil que escreveu os requisitos não colocou, por ignorância ou talvez propositadamente, para ter de fazer uma outra consultoria. Dadá apostava na segunda opção: “Provavelmente, um consultor da Accenture, da Cap Gemini ou da IBM que cobrou uma fortuna e ainda armou para ter de escrever uma revisão. Um cara todo engomadinho, de terno caro e cabelo de gel”. De vez em quando o chefe perguntava como estava indo, Dadá explicava algo como: “Você sabe, estou tendo problemas em conectar a base de dados SQL com a planilha, existe um bug no Windows, mas já reportei à Microsoft. Enquanto isso, estou trabalhando na sub-rotina de apresentação gráfica. Mas o pior mesmo é o manual de utilização, estou escrevendo um para deixar pronto quando meu estágio terminar. É o que leva mais tempo, documentação”. O chefe acenava com a cabeça, dizia “mmm, mmm, muuito bem, boa iniciativa”. Enquanto isso pensava: “Esse estagiário é um idiota. Não entende que eu nem faço ideia do que ele está falando? O que sei é que a Accenture nos cobrou uma fortuna para escrever os requisitos desse programa complicadíssimo, que até hoje nem entendi para que serve. E nós teríamos de declarar bancarrota se aceitássemos o preço que eles nos propuseram para programarem esse software. Inclusive, nos propuseram também trabalhar numa segunda revisão, já que o consultor deles vê uma grande possibilidade de economia, 32 mas não colocou nessa primeira versão porque essa análise ia além do escopo contratado. Estávamos nesse aperto, já tendo pago pela consultoria, mas sem ter dinheiro para ir pra frente, e aí me aparece esse babaca, trabalhando quase de graça; o sujeito tá se matando, não sai da frente do computador nem pra almoçar. Pena que ele não é uma tremenda gata, porque seria ainda melhor. Não, é melhor que seja esse magricela alto mesmo porque assim não fico tentado. Logo ele vai embora e eu pego as glórias junto à diretoria por ter introduzido esse programa por um preço bem mais em conta. Com certeza esse ano meu bônus vai ser gordo, graças a esse magricela. Talvez eu devesse chamá-lo para tomar uma cerveja. Há, há, há! Porra nenhuma, cerveja tá cara. E ele provavelmente é menor” . Uma vez, depois de dar o tradicional tapinha nas costas e dizer “é isso aí, Daniel, pega firme” e ir embora, com ar de satisfeito, resolveu mudar o script. Deu meia-volta e disse: “Você tá fazendo um ótimo trabalho, mas lembre-se que isso é prioritário.” Falou isso e colocou a mão direita 10 centímetros acima da cabeça, fisicamente indicando que alguém “‘mais alto’” que ele estava por trás dessa iniciativa. E continuou: “Se precisar da minha ajuda, não hesite em pedir. Isso tem de estar rodando, testado e bonitinho muito antes de você terminar o estágio. Talvez tenha de fazer hora extra, precisando nem precisa pedir: pagamos tudo dentro da lei, o dobro do salário”. Daniel acenou com a cabeça e retrucou com o semblante pensativo: “Bom que mencionou isso porque já estava para falar que será mesmo muito difícil manter o cronograma.” Durante o resto do estágio, Dadá trabalhou todos os dias até 33 as 10, 11 horas da noite. Nas últimas três semanas, praticamente morou no escritório da empresa. Virou noites, finais de semana. Inclusive estendeu o estágio por um mês devido a uns “bugs” que teimavam em aparecer. Por conta dos estudos, tinha de trabalhar de casa, via internet. Mas continuava indo na empresa nos dias livres e finais de semana. Poderia continuar assim indefinidamente, mas no final acabou ficando entediado. Um belo dia, todos os problemas sumiram, “sim, porque era tudo um bug do Windows, por isso nunca dava certo; agora instalei o novo service pack 3 e os problemas se resolveram. ” No final a empresa lhe pagou tudo: o salário básico era pouco, mas quando acrescido de todos os 50% e 100% adicionais, percentuais de férias e etc., pareceu-lhe uma imensa fortuna. Inclusive lhe deram um bônus por performance. Seu chefe até entregou uma carta de recomendação que dizia muito, mas não falava nada. “Daniel, com uma carta dessas na mão, quando você se formar, arruma emprego em qualquer lugar”. Fez ele prometer que voltaria no próximo ano. Daniel agradeceu com entusiasmo. E prometeu voltar. Na verdade, nunca mais apareceu por lá. Com o dinheiro fez um upgrade no computador, colocando o antigo como servidor, adquiriu um novo router, trocou toda a fiação elétrica da casa, instalando cabeamento estruturado, e pagou a taxa extra de conexão para o acesso via fibra óptica. O restante guardou porque sabia que em breve iria precisar dessa reserva . Sempre teve a noção de que poderia utilizar suas habilidades, tanto aquelas inerentes a sua pessoa quanto as adquiridas, para estabelecer um negócio inovador. Uma ideia começava a crescer dentro da sua cabeça, no momento ainda 34 eram pedaços desconexos mas, como num quebra-cabeças, ele já havia montado primeiro as bordas, para depois encaixar o miolo. A tal carta de recomendação ele jogou fora na lata de lixo assim que entrou na estação do metrô no caminho para casa. * * * Marcos abre a porta do apartamento e dá de cara com Valéria, a filha mais velha. Ela não se contém e aproveita para zoar no pai: “Legal pai, os anos 80 pelo visto voltaram com força total, há, há, há! Talvez você não saiba, mas estamos em 2011!”. Ele a encara, sério, mas os dois começam a rir. “Anos 80... Você nem sabe qual era o estilo... Você nem era nascida. Essa camisa tem apenas uns quatro ou cinco anos”. Verônica, a mais nova, vem correndo curiosa “Que foi, que foi?” . Valéria diz: “Não tá vendo o estilo do papai?”. Verônica olha, não vê tanta graça, mas mesmo assim ri. “Vocês estão com inveja”, diz Marcos. Vanessa aparece e faz cara de dó. Marcos a abraça e canta ao ritmo de Tom Jones “sex bomb, sex bomb, you are a sex bomb”. Vanessa ri e diz para as duas filhas, como quem sussurra baixinho: “Gente, me lembra de, por favor, deixar umas roupinhas do seu pai lá na casa da vovó. Se não, acontece uma tragédia dessas. Me poupem, né? Pega até mal pra nós. Já pensou se alguém nos vê com seu pai assim? Que iriam pensar?”. Todo mundo ri, as meninas vão pros seus quartos e Vanessa fala com ar sério: “Marcos, preciso falar uma coisa com você. Vem aqui no quarto”. Ele gela. Tenta manter a compostura, mas sua mente está a mil por hora. “Ela não pode ter descoberto 35 nada. Não tem como”. Responde: “Claro, que foi?”. Caminham para o quarto, ela fecha a porta. Ele ainda está gelado, um frio na espinha lhe corrói os pensamentos, ela vira pra ele com cara bem séria e diz: “Finalmente consegui falar lá na corretora de imóveis. Engraçado como o Patrício corretor sempre atendeu nossas ligações prontamente quando queríamos comprar. Agora que precisamos de uma ajuda, ele não está e também não atende o celular. Pela secretária, mandou dizer que não conseguiu encontrar uma solução. Disse que nós assinamos o documento com a entrada do imóvel para daqui a dois meses e que o proprietário atual não tem como sair do apartamento porque ele está esperando uma reforma terminar. Disse que vamos ter de esperar, não há outro jeito”. Marcos praticamente nem ouviu o que ela disse, tamanho o alívio. Captou só o final da frase. Concentra-se. Respira fundo, pega um ar, processa os pedaços que entendeu e faz senso de toda a mensagem. “Ah, tá. Só daqui a dois meses. Patrício”, pensa. Era isso. Finalmente, vocaliza: “Hum… bem… se não tem jeito…” . Vanessa insiste: “Mas você sabe, Verônica está tão animada para fazer o aniversário dela no apartamento novo. Matávamos dois coelhos: o aniversário e também a festa de inauguração do nosso novo ninho de amor”. Ela falou “ninho de amor” com um riso nos lábios; essa era a expressão que Marcos usava quando queria ser romântico, mas não sem uma ironia. Igual como quando a chamava de “minha nega”. “Pra gente seria até econômico”, prossegue Vanessa. “Você sabe que teremos de dar uma festa, não tem jeito de mudarmos sem uma festa, afinal, pega até mal pra quem é dona de um bufê. Então, em vez de gastarmos com duas festas, 36 seria melhor gastarmos com uma só. Será que se você conversasse pessoalmente com o proprietário, em vez de a gente ficar vendo isso através da corretora, não seria melhor?”. “E mais”, disse Vanessa: “tô com a impressão de que o Patrício não tá nem aí, já recebeu o dele e partiu pra outra. Vai ver nem falou com o proprietário. Já te falei que Patrício é muito esquisito. Ele me olha sempre de alto a baixo. Me dá um calafrio. Não quero mais mexer com ele”. Agora bem mais calmo, Marcos sorri para a esposa, abraça-a dizendo “vem cá minha nega”, enquanto pisca pra ela, meio que falando “entendi seu ninho de amor, viu?!”. Mas não foi preciso vocalizar as palavras, desde que se conheceram se comunicavam pelo olhar, sabia que Vanessa havia entendido a mensagem. Em vez disso ele fala: “Pode deixar. Vou ver isso. Xá comigo. Quanto ao Patrício, eu não o culpo. Tenho certeza absoluta que ele tá doido pra te comer. Deve ter batido muita punheta em sua homenagem. Mas te pergunto, quem não quer? Só se for viado”. Ri, olha Vanessa nos olhos e beija-a. Para sua surpresa, Vanessa geme baixinho e aperta-o forte quando o beija. É um bom sinal. Fazia um bom tempo que não davam uma no sábado à tarde. Ela diz: “Saudade”. Ele fala: “E eu ainda mais que perdi a tradição de sábado”. “Pois é, prefere sair e ficar vagabundando”. Ele pensa em retrucar, mas já estão na cama, os beijos mais profundos, a mão dele já por baixo da camisa leve que ela usava. Mas ela levanta rápido dizendo “tenho de ir ao banheiro” e sai para a suíte. Marcos fica sozinho na cama, se despe jogando as roupas 37 numa cadeira e fica nu debaixo dos lençóis. Vanessa sai do banheiro, está nuazinha. Com certeza se lavou no bidê, ela está sempre cheirosa lá embaixo. Ela senta na cama, uma posição meio que sua marca registrada. Ajoelhada, com a bunda encostando no calcanhar. Marcos está deitado, eles se olham. Marcos sempre admirou a beleza daquela deusa. Gosta da cor dos bicos dos seios dela. Lembra-se de quando ela estava grávida. Durante toda a gravidez e amamentação os bicos dos seios sempre estavam excitados. D-u-r-o-s. Dia sim, o outro também. Vanessa desliza e apoiando-se em um cotovelo, repousa a sua cabeça em uma mão, ficando assim numa posição entre sentada e deitada, algo também sua marca registrada. Com a mão livre, ela começa a acariciá-lo. Ele se põe a chupar-lhe os seios – na gravidez eles aumentaram bem, agora voltaram ao tamanho normal, “realmente uma pena.”. Ela começa o sexo oral. A chupada dela é gostosa, ele fecha os olhos. Pensa: “pelo visto, pelo menos não perdi a tradição de sábado”. A tradição de sábado, algo mantido há anos, consistia nela fazer-lhe um oral quando eles acordavam. “Existe maneira melhor de iniciar um fim de semana?”, Marcos sempre dizia. Agora, ele sentia a boca dela acariciando-o. Tenta evitar, mas não tem como não comparar a chupada de agora com a de ontem à noite. A que experimentava agora era uma chupada contida. Ele era de um tamanho médio, 18 centímetros, nada excepcional, mas também não fazia feio. Vanessa chupa-o basicamente na região da cabeça, uma chupada meio seca, meio tímida. Sandra, ao contrário, engolia todo o membro, era uma chupada molhada, era variada, ela batia o pênis no rosto, na língua, fazia caras e bocas, usava as mãos, 38 ora somente a boca. Marcos sente a hora do gozo chegar, Vanessa já o conhecia muito bem, e passa a usar somente as mãos. Os jatos quentes molham a barriga de Marcos: “Caralho, na 4ª série primária eu já devia ter uma namorada que me deixava, pelo menos, gozar nos peitos dela”, exagera. Achava chato que nem isso Vanessa fazia, quer dizer, algumas vezes até já fez, mas há muito isso não acontecia. Pega uma toalha, enxuga-se, beija Vanessa e vai direto chupá-la. Sem muitos rodeios. Marcos sabia que tinha uma capacidade inimitável em relação à potência, mas temia que talvez fosse repetitivo na cama. Como agora, por exemplo: “Eu a chupo da forma como sempre fiz. Talvez precise inovar também.” Lembra-se de um jornal, ou artigo de revista, que dizia que o homem deveria fazer o alfabeto com a língua. Inicia fazendo o A, o B, o C, o D… de repente, sente Vanessa meio que… dando um sinal que alguma coisa estava errada. Meio que um sinal de frustração, dando um tranco com a pélvis. Capta a mensagem, volta a fazer do jeito convencional. Nota ela retornando ao ritmo do orgasmo. Ela inicia um leve vai e vem com o quadril, vai aumentando o ritmo, assim prossegue até um pequeno tranco. Não grita, não geme. No máximo, um suspiro mais profundo. Imediatamente, ela procura tirar a boca dele do seu sexo, no que Marcos resiste e prossegue agora num ritmo mais devagar, mas mais profundo. Ela retesa ainda mais o corpo, meio que gozando uma segunda vez, e começa a relaxar enquanto ele vai diminuindo o ritmo até parar. Beija as coxas dela, limpando-se parcialmente do suco vaginal e da saliva na boca. “Talvez eu devesse, quando ela fosse gozar, parar e fazer só com os dedos. Será que ela iria gostar?” pensa, enquanto 39 limpa a boca numa outra toalhinha ao lado da cama. Beijam-se, o gosto era de sexo nas duas bocas. Beijam-se de novo. Marcos sente o membro ereto, querendo mais. Olha pra ela, que já sabia e faz cara de “deixa pra mais tarde”. Ele não insiste. Também quer tirar uma soneca. Eles continuam abraçados, se beijam e se olham. Ela diz “eu te amo”. Ele responde “também”. Ele pensa na noite de ontem. Havia sido bem melhor fisicamente que agora, mas com certeza “esse momento aqui dá de 10”. Nunca poderia ter algo, nesse paralelo “psicológico”, que fosse semelhante ao que tinha com Vanessa. Isso era algo muito especial. Talvez fosse a melhor coisa que tinha na sua vida. Talvez ainda melhor do que as filhas, que adorava, mas sabia um dia elas iriam embora, se casariam, teriam outra família. Isso que tinha com Vanessa era o bem mais precioso que possuía. Começa a divagar, sente sua mente ao mesmo tempo se acelerar nos pensamentos mas se esvair em coerência. Vanessa sabe que o “também” da resposta ao “eu te amo” era uma brincadeira, porque tanto poderia significar “eu também te amo” como “eu também me amo, obrigado”. Por isso, naquele último segundo antes de dormir, ele murmura “Vanessa, eu também te amo”. * * * Dadá é universitário. Às vezes, como hoje, aproveita as tardes de sábado para fazer algum trabalho. Raramente tem necessidade de ir fisicamente ao campus. Estuda à distância. Dessa forma, pode trabalhar na empresa durante a tarde e a noite quando talvez fosse 40 necessário atender o telefone ou responder algum e-mail. Há muito não estuda mais as cadeiras específicas do seu curso. Foi chamado na universidade duas vezes, para conversar com a orientadora. Isso porque a grade de matérias que ele fazia era muito díspare. Havia feito cursos de Finanças Internacionais e Finança Corporativa. Direito Internacional. Psicologia. Português. Mas ele cursa, pelo menos oficialmente, computação. Nas duas vezes, enrolou. Explicou que estava confuso. Não contou a verdade. Que há muito perdera o interesse pela área de computação em si. Era uma pessoa prática. Herdara a praticidade da mãe e a inteligência matemática do pai. Queria ter o conhecimento, a base teórica para resolver problemas. Por exemplo, durante os cursos de Psicologia, ele interessou-se pelo trabalho da psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross, que descreveu os cinco estágios de uma grande perda, como a morte de um ente querido ou a perda de bens materiais (como no caso de uma pessoa que tem seu lar destruído por uma enchente) etc... Os cinco estágios são: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Leu livros, procurou artigos. Passou muitas noites em claro, estudando. No final do curso, escreveu um trabalho final muito além do que seria necessário. Nessa cadeira foi aprovado com nota máxima. Durante o mesmo semestre, estudava também Português, Sistemas Operacionais e Base de Dados Relacionais. Em todas elas, passou com pouco mais que o mínimo necessário. Mas para essas disciplinas nem chegou a comprar os livros didáticos indicados. Não estudou na véspera da prova. Não estudou, ponto final. Apenas fez as provas. Passou. Não que fosse um gênio das ciências exatas. Em uma analogia, 41 se o virtuoso Wolfgang Amadeus Mozart já compunha e tocava piano aos 4 anos de idade, Daniel tocaria aos 7, 8. Não era gênio, apenas tinha uma facilidade inata superior às outras pessoas para captar os conceitos de matemática e computação. Para ele, era apenas natural pensar em termos de tabelas de base de dados. Em termos de “objetos”. Em termos de “protocolos”. Faltava-lhe, entretanto, o raciocínio espacial. Nunca poderia ser arquiteto. Não conseguia desenhar nem uma casinha com fumaça saindo da chaminé. Ninguém é perfeito. Mas havia uma matéria em computação que ele se dedicava com afinco: Segurança da Informação. Já havia cursado todas as matérias dentro dessa área existentes na universidade. Depois cursou mais duas, numa universidade que tinha convênio para poder transferir os créditos. Se não pudesse transferir os créditos teria feito assim mesmo. A empresa precisava estar com os dados seguros. A segurança física dos dados já havia sido assegurada. Agora faltava apenas a segurança mais difícil, a lógica, que é assegurar que ninguém entraria nos seus servidores, ou que seguiria as pegadas e traços que deixasse pela internet – toda vez que alguém acessa uma página da web, envia um e-mail, está deixando pegadas atrás de si. Como na historinha dos pedacinhos de pão marcando o caminho, essas pegadas denunciam, para pessoas com um bom conhecimento, qual computador enviou qual mensagem. Qual computador acessou qual página. É assim que a polícia rastreia quem foi o hacker que entrou em um determinado computador, que colocou um vírus na Nasa, por exemplo. Após todos os cursos, chegou à conclusão que é impossível apagar todos os rastros. Se o governo de um país 42 quiser descobrir quem foi o hacker, consegue. É inerente à natureza da internet. Deixar rastros. A questão, nesse caso, é fazer a coisa ficar tão complicada que seja necessário um governo para rastrear. Nesse caso, tinha o cofre como último recurso. Mas, antes disso, tinha a psicologia ao seu lado. Os cinco estágios da dor. E, antes disso, as finanças e a legislação como barreira protetora. Como qualquer pessoa com razoável conhecimento de informática sabe, os rastros na internet são deixados, prioritariamente, pelo endereço IP da máquina (uma coletânea de números do estilo 127.192.8.7). Esses números são designados pelo provedor de internet. Sabendo-se esse endereço pode-se, com menor ou maior esforço, descobrir quem é o provedor de internet e, através dele, o assinante por trás desse número. Daniel conecta-se à internet através de dois provedores convencionais. Porém, feito isso, ele conecta- se, de forma aleatória, a outros dois provedores de endereços IP especializados no chamado “IP Secreto”. Na prática, a cada meia hora os computadores da rede de Dadá recebem novos endereços IP de diferentes países. Isso significa que, se alguém rastreasse um e-mail enviado por Daniel descobriria que havia sido enviado de um país, digamos, Tailândia. Meia hora depois, o próximo e-mail proveniente do mesmo computador seria, então, rastreado a um computador localizado na Argentina. O chamado Endereço MAC, o que identifica o computador em si, fazendo a conexão entre o endereço IP virtual e a máquina física (literalmente, provando que esse computador em específico era o computador o qual tinha um dado endereço 127.192.8.7 no dia tal, hora tal) também era trocado. Para isso, Daniel 43 gastou dois meses quebrando a cabeça. Existem muitos programas na internet que fazem tal troca, porém Daniel precisava fazer isso online. Não queria ter de ligar e desligar as máquinas, como todos os programas necessitam. Por fim, logrou fazê-lo. Na verdade, poderia até tirar patente da sua invenção. Na prática, significava que mesmo se rastreassem algo e eventualmente chegassem a ele, (o que somente aconteceria depois que fosse expedido um mandado de segurança contra os provedores do IP Secreto para que abrissem seus registros, um localizado nos Estados Unidos e outro na Holanda) não existiria nenhuma prova de que teriam sido esses os computadores utilizados. Daniel poderia argumentar, num eventual julgamento, que alguém invadiu sua rede, sem o seu conhecimento, e utilizou sua conexão sem fio para fins que desconhecia. Quando finalmente deu-se por satisfeito no quesito segurança, era praticamente fim de verão. Sentia-se pronto. Já havia começado, furtivamente, a contatar clientes e fornecedores. As empresas já estavam funcionando, legalmente, há, no mínimo, um ano. Brixare e Lindemann estavam a postos. Pensou que em dois, três meses pudesse iniciar a fase de testes: “Talvez em outubro fechemos com uns cinco clientes-piloto para teste”, pensou. Mas nunca imaginou que o negócio pudesse ir tão bem. Em outubro, precisou de exercer autocontrole para não exceder 10 clientes. Em novembro, preferiu não atuar para ter total controle da situação. No meio do estresse de dezembro e Natal, pensou que a clientela fosse diminuir, mas para sua surpresa fechou, sem esforço, com 15 clientes. Em 13 de janeiro de 2011, já tinha uma cartela de clientes suficientes para os meses de janeiro e fevereiro. 44 Agora em abril estava perto do ponto de saturação: não tinha como dar vazão a tantos clientes. Seu pensamento se volta, como sempre acontece nessas horas, às mulheres. Tudo ia bem na sua vida. Para ir melhor, só precisava de aprender a controlar as mulheres. “Essas sim, dão dor de cabeça”. Ainda não havia encontrado o programa de computador capaz de ajudá-lo nessa tarefa. Por mais que procurasse no Google. “Hora de pegar um rango”. * * * Acordam praticamente juntos. Já passava das 18 horas. Era uma noite quente, úmida. Talvez um tenha acordado primeiro e, ao mexer, acordou o outro. Continuam entrelaçados, nus, igual a duas cobras. Marcos sente o sexo dela encostado em sua coxa. Faz pressão. Vanessa fecha os olhos e curti a carícia. Sabe que ele era o melhor homem que havia conhecido. Ele havia sido seu primeiro homem. Na época, achava que todo homem seria como Marcos. Por isso, talvez não tenha dado todo o valor ou a atenção merecidos. Ele teve de esperar muito, pudera, ela só tinha 18 anos quando se conheceram. E ele teve de fazer tudo pacientemente, dentro do ritmo que ela ditou. Das primeiras carícias no alto da Afonso Pena por cima da camisa, até a primeira chupada nos seios devem ter se passado, no mínimo, seis meses. Sem contar os meses iniciais nos Estados Unidos onde só rolou beijo e mais nada. Ela tinha medo. Ou receio. Ou insegurança. Ou tudo junto. Não queria ser fácil, não queria ser puta. A avó lhe dizia: “Tome cuidado com os meninos, eles só querem uma 45 coisa”. A mãe lhe falava: “Casei virgem, seu pai foi o único homem que conheci”. Ela acreditava. Também não sentia aquela ardência louca que as colegas da UFMG lhe falavam entre risos. Que perdiam a cabeça. Que ficavam ensandecidas. Ela gostava mais dos carinhos, dos beijos. Para ela, estava bom assim. Mas o tempo foi passando, a intimidade aumentando. Os corpos, consciente e inconscientemente, queriam mais. Evoluíram para um drive-in, o Charm, na BR-040 indo para o Rio de Janeiro, como que treinando para chegar aos motéis que ficavam logo à frente. Longas sessões de sexo oral. Por muito tempo, somente ele fazendo nela. Ela gozava. Era delicioso. Quente, úmido, macio. Sem dor na consciência. Sem medos. Ela, então, retribuía, fazendo-o gozar com a mão. Por fim, começou a fazer nele também. Não gostava muito. Fazia porque sabia o quanto Marcos gostava: “Ele merece, né?” Uma vez, sentiu o gostinho de esperma. Ficou com aquele gosto ruim uma semana na boca. Detestou. Por fim, com quase dois anos de namoro, sentia-se pronta. Já tinham feito de tudo, menos “aquilo”. Foram para um motel, a primeira vez. Um motel caro, o Chalet, suíte super luxo, enorme. Tudo estava perfeito. A menstruação dela tinha acabado dias antes, assim não precisavam nem de camisinha. Não queria que a primeira vez fosse com camisinha. Ouviu dizer que camisinha diminuía o prazer. E queria tudo perfeito. Tinha medo. Medo da dor. As colegas de faculdade, todas, contavam como algo que havia acontecido há milênios. Mesmo assim, elas se lembravam da dor. Que tinha sido horrível. Na sala, a turma formanda havia organizado uma rifa com noite em motel. Todas as meninas compraram a rifa, a turma era basicamente de mulheres, 46 tinham poucos homens e os que haviam pareciam ser gays. Ela não comprou. Fingiu que não viu o risinho disfarçado de uma colega cochichando com a outra. “A Vanessa, aposto que ela é virgem”. Eles deitaram, nus. Ele perguntou se ela queria ver um filme pornô. Ela disse que sim, porque nunca tinha visto um. Ele ligou a televisão, e uma mulher estava ajoelhada entre dois homens. A câmera focava na penetração, dois pênis enormes, um em cada buraco. Tentou não se mostrar assustada. A câmera pegou um plano mais amplo e viu que a mulher ainda chupava outro enorme membro preto que começou a jorrar enorme quantidade de esperma no rosto dela. Vanessa virou a cara, nem precisou falar nada porque Marcos desligou imediatamente a TV. Ela o beijou. Não sabia se tinha ficado excitada ou enojada com o filme. Não sabia que era assim. Não queria levar esperma no rosto. Uma vez a mãe havia lhe dito: “Hoje, todo mundo fala de sexo anal. Isso pra mim é coisa de prostituta. Prostituta da Guaicurus, porque com certeza as melhorzinhas não fazem, não. Ou então coisa de viado. Se tem uma coisa tão boa na frente, feito certo na medida, porque iam querer o sujo lá de trás. Eu, não entendo”. A mãe, às vezes, falava umas coisas dessas. Principalmente quando voltavam do clube e ela havia tomado umas. Nessas horas, preferia não ficar perto. A mãe podia fazer uma pergunta embaraçosa. Ia para o quarto e lia, estudava e depois tomava um banho e se aprontava para a saída da noite com Marcos. Eles se beijaram. Ela esqueceu o filme, se concentrou nele. Tentou esquecer o medo. Começou a sentir-se molhada. Leve. Excitada. Marcos já tinha tido outras experiências. Ele não era virgem. Isso era bom. Ela não que47 ria alguém que não soubesse o que fazer. Ele levou a mão dela ao pênis, que a essa altura estava gigante. Nunca o tinha sentido tão grande. Masturbaram-se mutuamente. Marcos começou a chupá-la. Molhou-a bem. Mas teve o cuidado de parar antes que ela gozasse. Ele se posicionou para entrar nela. Ela flexionou as pernas, colocou os pés firmes no colchão. Sentiu algo forçando lá embaixo. Num súbito, o prazer se foi. Sentiu-se seca. Boca seca. Boceta seca. Sentiu falta de ar. Marcos pesava uma tonelada em cima dela. Sentiu que ele tentava enfiar uma coisa muito grande num orifício muito pequeno do corpo dela. Dor. Dor. Dor! Não viu mais graça naquilo. “Por favor, pare”. Ele parou. “Tá doendo muito. Vamos dar uma pausa?”. Ele olhou no fundo dos olhos dela com cara de cachorro chorão, mas quedou-se ao seu lado. Ela começou a chorar. Não sabia o porquê. Por frustração? Por medo? “E se ela fosse diferente e nunca gostasse de sexo?”. Havia lido nas revistas que isso seria possível. “Umas pessoas não gostam e ponto final.” Leu também que algumas meninas tinham o hímen tão forte que é necessário uma cirurgia para perfurá-lo. “Como podia saber se não era uma dessas?” Começaram a conversar. Parou de chorar. Ele sugeriu um banho de hidromassagem para relaxar. Foram. Ficaram quase uma hora na banheira. Abriram o teto solar, a noite estava quente. Ela sentiu a vontade voltar, se enxugaram e voltaram para a cama. Começaram a se beijar, ela se sentiu úmida de novo. Assim que ele ameaçou tomar posição de penetração ela sentiu o medo voltar, sentiu o sexo secar. Olhou-o nos olhos e falou: “Hoje, faz pra mim com a língua, tá? Outro dia a gente tenta de novo”. Nos finais de semana seguinte, voltaram ao mesmo 48 motel duas vezes. A primeira novamente na super luxo, depois na standard. Começou a ficar muito caro e passaram a frequentar os motéis mais baratos. Ela somente foi perder a virgindade quase dois meses depois. No motel Las Vegas, o mais barato da 040. * * * Johannes Brixare senta-se em seu escritório. Tudo em ordem, perfeitamente organizado. Livros. Muitos livros. Pastas. Pastas de arquivar, dessas com quatro anéis, formato A4, todas propriamente identificadas na lombada. Identificadas com o nome da empresa correspondente. Existiam pastas de 2009. De 2010. Eram todas finas. As de 2011, apesar de ainda ser meio do ano, estavam já bem grossas. Provavelmente terá de abrir outras pastas, nomeá-las 2011/2. É sábado à noite. Olha para o lado de fora, não vê nada a não ser a escuridão da noite. Talvez ventasse. Não sabia. As janelas estão fechadas. O escritório está quente. Pensa em abrir-las. Talvez se o fizesse ficasse frio demais. “Não, melhor deixar assim.” As janelas ficam no alto, é complicado abri-las. Precisa de por uma escada. Ouve o barulho de algo caindo no chão no andar de cima. Acreditava estar sozinho. “Fever night, fever night, fever”, lembrase daquela música antiga dos BeeGees. “As pessoas gostam de sair sábado à noite. Muitos crimes.” Lembra-se nitidamente que o pai adorava sair sábado à noite. Curtir a noite de Belo Horizonte. “Stadt Jever. Sushi Naka. Cervejaria Brasil. Provincia di Salerno. Tip Top.” Os pais eram clientes cativos. Nunca precisavam reservar mesa, 49 invariavelmente o dono fazia questão de vir cumprimentar, dava desconto. Depois que o pai morreu, a mãe passou muitos sábados em casa. Muitos. Anos. Agora não, ela costuma sair e se divertir. Mas sempre com amigas, nunca com homens. Vê, nos olhos dela, que o pai foi o único homem de sua vida, o grande amor. A mãe sempre foi bonita. Lindíssima. Até os 44 anos, ela parecia ter 32, 34. Quando fez 45, tinha cara de 45. Ainda pensa na mãe: “Tomara que ela saia hoje mesmo, melhor assim. Uma preocupação a menos”. Imagina que, em breve, iria também sair sábado à noite. Iria à melhor boate.Pediria champanhe. Rios de champanhe. “Mulher gosta de dinheiro, quem gosta de homem é bicha”. Gostava dessa frase. Era uma frase sábia. Já tinha tentado várias vezes sair à noite, arrumar uma namorada. Ou uma transa. Mas seu tipo franzino não chamava a atenção. “Pra chamar a atenção na boate, na noite, o cara tem de ter um super corpo, passar o dia malhando.” Sabia que nunca faria isso. Mas existia uma segunda opção: dinheiro. Bastava reservar um lugar VIP, abrir umas garrafas de champanhe. Depois, era só descer, convidar as garotas para tomar um champanhe no reservado VIP. Podia, também, simplesmente pedir ao garçom que entregasse uma taça de champanhe para a garota que escolhesse. Talvez ela tivesse namorado e não topasse. Mas, sem dúvida, muitas topariam. Em breve, elas estariam fazendo fila para sentar junto a ele. A partir daí, a imaginação era o limite. “Mas, para isso acontecer, deixa eu me concentrar agora”, pensa. Ele era o homem dos investimentos e impostos. Coleta o dinheiro que recebeu através dos sites de trabalho on-line como 50 vWorker. Transfere-o para diversas contas. Contas correntes, contas poupança. Contas de investimento. Fundos de ações. Contas de aposentadoria. Até mesmo para o exterior. Para a Suíça. Prepara as declarações de fechamento do mês junto ao fisco. Imprime tudo e, contrariando todas as expectativas, não faz o envio on-line. Prefere arquivar uma cópia em uma pasta preta. Coloca a outra cópia em um envelope. Sela. Irá colocar no correio amanhã. Se fosse para receber dinheiro, teria enviado on-line. Como é para pagar, prefere enviar por correio. “Tenho pressa de receber, pagar não. O governo que escaneie, redigite tudo. Talvez erre pra menos. Se errar pra mais, tenho a minha cópia”. O mês está fechado, todo redondo. Tudo legal. Em todos os sentidos legal, tanto no sentido de bom como no sentido de dentro da lei. “Pegaram Al Capone por conta do imposto de renda. Pegaram Martha Stewart. Pegam todo mundo. Só no Brasil que não pegam os deputados, senadores, governadores porque não querem. Não é complicado. Ter conta no exterior não é crime. Ter conta no exterior e não declarar, isso sim é crime. É só auditar a declaração do imposto de renda uma por uma. São só umas 300, 400 pessoas.” Uma vez, leu que o próprio presidente veta ou não o fisco de auditar os deputados e senadores. Ele receberia uma lista com os nomes que os peões fodidos do fisco suspeitam estarem fazendo algo. Tirado direto do computador, só baseado na análise financeira nua e crua. O presidente vai e marca, um a um. Veta totalmente os amigos de qualquer investigação. Depois os aliados. Os indecisos, provavelmente marca de amarelo. É para colocarem uma pressãozinha. Os adversários, marca de 51 verde. O que, na verdade, significa apenas que é para darem uma multa nas empresas deles. Porque nunca se sabe, o adversário de hoje é o aliado de amanhã, então melhor não pegar pesado. Leu isso quando procurava informações na internet sobre o impeachment do ex-presidente Collor para um trabalho escolar. Mas como não conseguiu achar nenhuma outra informação que confirmasse a existência dessa lista, não colocou no trabalho. Na época do Collor, propriamente dita, pode-se dizer que ele não se interessava por política. Agora continuava não se interessando, mas era atento ao mundo ao seu redor. A política era sua grande aliada, mas podia tornar-se sua grande inimiga. Por isso, estar informado era vital. “Tô cansado. Acho que vou tirar um cochilo. Mas antes vou colocar um filme dos bons.” * * * Marcos abre os olhos. Vanessa está enroscada nele. Ele mantém a pressão da coxa contra o sexo dela. Ela responde com um sussurro manhoso e se aninha ainda mais nos braços dele. Pensa em desfrutar um pouco mais do sábado. Uma trepadinha rápida para despertar? Olha no relógio, já são quase 18h30. Tem que fazer o jantar para as meninas. Dá um beijo na esposa, que ainda está com cara de sono. Toma uma ducha rápida. “Está um calor infernal”, pensa. Sai do banheiro e vê a esposa nua, de pernas cruzadas, sentada na beirada da cama esperando a sua vez. Abaixa-se para beijá-la e diz, em inglês, “você é demaaaaais”. Continua, em português: “Se dependesse 52 de mim, a gente ficaria um pouco mais no quarto. Como nos velhos tempos. Mas, como você sabe, a vida é duuuura”. Faz uma pausa. Acrescenta: “Um homem tem que fazer aquilo que um homem tem que fazer, não é verdade?”, diz, parafraseando um ditado americano. “Então, já que é assim, se eu te convidar para uma pequena viagem à Ásia, o que você diz?” “Acho ótimo”, responde. Ao mesmo tempo se levanta e entra no banheiro, fechando a porta atrás de si. Marcos sai do quarto e pergunta em voz alta para as meninas ouvirem: “Alguém gostaria de uma pequena viagem à Ásia?” Não ouve resposta. “Droga. Antigamente, minha recepção nessa casa era outra”, pensa. Bate no quarto de Valéria. Não há resposta. Bate de novo. Idem. Abre com cuidado a porta e Valéria lhe olha, tirando os olhos da revista que lia e puxando o fio do fone de ouvido direito. Quando o fone de ouvido sai, Marcos consegue claramente ouvir a música “Judas”, da Lady Gaga. “Filha, estou ouvindo daqui. Você vai arrebentar seu ouvido assim. “ Ouve suas próprias palavras e pensa “raios, eu estou falando isso? Como fui parar aqui? Ontem mesmo estava ouvindo isso da minha mãe” e prossegue “o que você acha de uma pequena viagem à Ásia?”. A filha faz cara de alegria, manda um beijo pro pai e diz: “Ótima ideia. Te adoro papi!” e volta a enfiar o pequeno fone no ouvido. Por fim, Marcos bate no quarto de Verônica, que grita “Eeeeentra”. Marcos abre a porta e vê a filha entretida jogando no site Panfu. Ou Stardoll. Um desses. Sente-se seguro com a filha de 8 anos no computador. Ele instalou o “Segurança da Família”, da Microsoft. E esses sites eram bem policiados. Uma vez, 53 assistiu a uma palestra do sueco dono da Stardoll. Ele enumerou todas as medidas de segurança do site. Por exemplo, o bate-papo não é em tempo real. Existem filtros para evitar o uso de vocabulário adulto ou grosseiro. Um grupo de pessoas passa o dia lendo textos de bate-papo que são todos gravados. O bate-papo fecha às 20 horas, horário local do país. E por aí vai... Era um gordinho simpático, mas ao mesmo tempo com uma certa presença. Ouviu dizer que o cara dirigia um Porsche rosa conversível que ficava sempre parado na Rua Hudiksvallsgatan, próxima ao centro de Estocolmo, onde fica a sede da Stardoll. A filha lhe sorri e diz: “Que foi?”. Ele retruca: “O que você me diz de uma pequena viagem à Ásia”. Ela faz sinal de positivo com o polegar. Ele também faz positivo com o polegar, batem os polegares e os dois fazem “tchuuum”. Ele sai, fechando a porta do quarto enquanto ela grita lá de dentro: “Não muito apimentado!!!”. Ele vai para a cozinha. “Uma pequena viagem à Ásia” era um prato de sua autoria. Cozinhava bem. Geralmente pratos exóticos, de sabores fortes. A pasta bolonhesa dele era famosa entre as colegas das meninas. O segredo era usar pouco molho (para não ficar aguado), muita carne moída, bastante tempero e uma pequena abobrinha verde, ralada, espremida para tirar a água e misturada no meio da carne. Morou muitos anos sozinho. Mais ou menos três nos Estados Unidos, entre 88 e 91. Tecnicamente, nunca morou sozinho lá. Primeiro na casa de um político, depois na casa da namorada do político. Ela também ficava pouco em casa, então continuava morando relativamente só. Anos depois, morou por um ano sozinho em Estocolmo. 54 Novamente, sozinho em termos, porque morava em uma moradia estudantil. Tinha seu quarto, mas nunca se estava completamente só. Era como um hotel, mas todos no hotel eram estudantes. Estar solitário é sempre uma questão relativa. O famoso solitário em meio à multidão. Todo mundo já se sentiu assim. Mas, agora, com Vanessa e as garotas, muito raramente experimentava isso. Faziam parte de uma unidade, um time. E ele era o capitão. O piloto do avião. A co-piloto lhe sorria, parada na porta da cozinha. Ele abre uma garrafa de vinho branco, serve uma taça para ela, outra para si. Fazem um brinde: “A essa tarde maravilhosa e quem sabe a noite tem mais?”. Riem. Ele passa a mão na bunda dela. Ela deixa. Ele põe-se a trabalhar. Marcos havia comprado em uma loja de produtos asiáticos um potinho de coentro amassado; molho de peixe (fish sauce); quatro pimentas parecidas com a dedo de moça, porém tailandesas. Na geladeira já tinha um pacote de brócolis congelado e também filés de frango. Começa cortando o frango em cubinhos; doura-os numa wok. De vez em quando retira o caldo que se forma colocando-o em numa vasilha à parte “senão o frango fica com gosto de cozido”. Considera o frango dourado o suficiente. Vanessa não está mais na porta. Pensa em Sandrinha e lembra que conversava diariamente com ela no Facebook. Agora ela deve estar achando estranho o sumiço, tipo “comeu e sumiu, né?”. Pensa: “Às vezes é até perigoso fazer esse tipo de coisa. Dar uma, desaparecer. Não é bom deixar mulher puta da vida”. Junta quatro, cinco colheres pequenas do coentro suficientes para dar gosto ao prato, sem exagero, mais a pimenta fresca cortada bem fininha. Adiciona um tablete de caldo 55 de frango Knorr, volta com o líquido, abaixa bem o fogo, joga uma boa mão cheia de buques de brócolis na panela. Pensa de novo em Sandra: “Que trepada! Fantástica!”. Imagina que ainda vá encontrá-la uma, duas, no máximo, três vezes. “Ela vai aparecer de vez em quando. É até bom que ela more longe, porque seria difícil evitar querer vê-la. Mas na segunda ou terceira vez ela virá com papo que ‘essa situação é muito complicada para mim, entenda’. Entraremos em comum acordo que ‘é melhor assim, vamos deixar como está e não nos envolvermos mais’”. Toque final, salga o prato utilizando o molho de peixe, nunca sal. Satisfeito com o sabor, enche o ebulidor elétrico de água, um truque seu antigo, “muito mais rápido do que ferver na panela”. Experimenta pela última vez o sabor, agora a wok está com maior quantidade de caldo, vindo principalmente do brócolis que estava congelado. “O grande perigo é o brócolis. Você tem de ficar atento porque brócolis muito cozido é horrível”. Tudo agora tem de ser muito rápido: a água ferve, ele a põe numa grande vasilha, e nela submerge o macarrão de arroz chinês fininho. O tempo de cozimento é de apenas três minutos. Mexe muito bem, certifica-se que todo o macarrão está solto, joga-o no escorredor e imediatamente banha-o com água fria: “Senão vira tudo uma paçoca só”. O brócolis já esta quase no ponto, joga o macarrão frio na panela com o frango, agora é só aquecer um pouco. Grita pelas meninas: “Atenção viajantes. O avião está saindo. Em breve estaremos em um restaurante na Ásia”. Trabalha rápido, em ritmo quase frenético. Monta os pratos de forma estética, colocando uma porção de massa e o frango por cima. Faz isso para todos, de forma proporcional ao tamanho da pessoa. 56 Leva os pratos para mesa. Volta correndo para a cozinha e grita de novo: “Atenção, essa é a última chamada”. Ouve barulho de portas se abrindo. Pega o litro de suco de laranja para as meninas, a garrafa de vinho. “Meninas, peguem os seus copos”, fala alto antes que elas se sentem à mesa. Quase tromba com as duas. Ele detesta comida fria, diz sempre que “um verdadeiro ‘Reis’ sempre come ou bebe comidas servidas quentes, bem quentes, e comidas servidas frias, bem frias”. Vanessa já está sentada na mesa. Pensa que tem uma esposa maravilhosa. Ao mesmo tempo, involuntariamente, lembra-se de Sandra, o rosto molhado, e do tesão monumental que sentiu naquela hora. Lembra-se da “doida” nos Estados Unidos, coisa de muitos anos atrás, gemendo alto de quatro. “Devo estar ficando maluco, que merda é essa? Estou perdendo o controle?” Olha as duas filhas. Serve mais vinho para a esposa, põe suco de laranja para as garotas. Finalmente se serve de mais vinho. Antes de iniciar a comer, ergue a taça e propõe um brinde: “A vocês, queridas”. Elas todas erguem as taças e no momento que elas se encostam, Verônica adiciona: “E que a nossa ‘viagem’ de hoje não esteja muito apimentada”. Todos riem. Começam a comer. Estava perfeito. 57 Domingo, 3 de abril de 2011 “Os Reis do Minas” ara Daniel, o fechamento de um mês e a abertura de outro é o momento mais crítico da empresa. Enquanto os fechamentos diários feitos por Lindemann são vitais para se ter os controles das contas a receber e as transferências semanais entre empresas de Brixare são cruciais para se manter um fluxo de caixa adequado, é sempre durante o fechamento do mês que o fator humano tornava a empresa vulnerável. Por isso ainda estava acordado, naquele início de madrugada de sábado para domingo. Por volta do dia 15, já iniciava a procura de novos fornecedores da estrutura física da empresa para o mês seguinte. Como qualquer dia perdido significava perda de receita, a troca tinha de ser feita com extremo cuidado. O fornecedor escolhido dessa vez, a Eletro Bréscia, já tinha sido notificada que o serviço teria de ser efetuado no domingo. Domingo era o melhor dia para se efetuar a troca, já que era raro aparecer um cliente. O problema era que poucas empresas trabalhavam no domingo, mas a Eletro Bréscia era uma das exceções. Para confirmar que isso realmente acontecia, e não apenas se tratava de propaganda enganosa, no domingo passado Daniel havia escrito um e-mail perguntando detalhes de banco e número da conta de depósito. Ficou satisfeito quando recebeu a mensagem de volta menos de duas horas depois. Mas, como dizia “é nessa hora que o fator humano pode criar complicações, então todo cuidado é pouco”. 58 Abre uma planilha Excel intitulada: “Lucro Previsto Lucro Real 2011”. Seleciona a planilha “abril”. As planilhas de janeiro, fevereiro e março têm cor amarela. Já estavam fechadas. Abril tem cor branca. Na coluna custos fixos, linha “Hotel”, coloca R$ 9.435. Foi o preço que pagou ao Max Savassi para a reserva do mês de abril. “Abril”, era por assim dizer, relativo. O abril era “contábil”, e este ano se estendia do dia 3 ao dia 30. A reserva no Max havia sido feita via Hotels.com, e o pagamento, através de depósito direto na conta do hotel, feito no caixa automático Bradesco. Haviam dividido o depósito em três pagamentos. Dois de R$ 4 mil e o terceiro com o valor restante. Detestava que fizessem isso. Mas não tinha como reclamar, era o procedimento deles. Às vezes faziam isso com valores irrisórios, o que o irritava profundamente. Não fazia diferença para ele, mas achava um procedimento pobre, não-otimizado, ineficiente. Na linha de baixo, “Instalação e Desmonte”, R$ 637. A linha seguinte, “Depreciação de Hardware”, em cor amarela, estava preenchida com R$ 853. Esse número vinha de uma outra planilha. Nela havia uma listagem de vários tipos de computadores, telefones celulares, modems, aparelhos de TV, Xbox, etc. A linha seguinte, “Custos Financeiros” também era de cor amarela e está preenchida com R$ 535. Também vinha de uma outra planilha, com a listagem de números de contas bancárias, com o custo mensal de cada uma. Mais abaixo, em destaque, está: “Total de custos fixos R$ 11.460”. A próxima seção era intitulada: Previsão de Receita. O resto da tabela tem cor amarela. São resultados de outras tabelas ou números resultados de fórmulas. “Receita por Cliente: R$ 30.000”. 59 “Custo Marginal por Cliente: R$ 1.173”. “Despesas Financeiras por Cliente: R$ 723” Essa é a parte mais complicada da planilha. Isso porque a verdadeira receita por cliente é de R$ 15.000 + R$ 15.000. Não pode contabilizar o valor todo em um mês porque isso inflaria a previsão de ganhos. Por outro lado, a planilha do mês anterior já se encarrega de transferir para o mês seguinte os respectivos valores. Por isso, mesmo antes de entrar qualquer coisa na linha final “Previsão de Receita”, já há o valor de R$ 435.000 vindo do mês de março. O março contábil havia sido longo, de 27 de fevereiro a 2 de abril. O único campo em branco lia-se “Previsão de clientes”. Entra o número 26. Já tem 26 clientes fechados para o mês de abril. Aparece R$ 390.000. Receita prevista do mês: R$ 825.000. Confere a linha final, a mais grossa, escrita em fonte 16: “Previsão de lucro ideal: R$ 784. 232,00”. Um outro campo, logo abaixo, lê-se: “Média de Clientes Perdidos”. O número mostra “34,5%”. Desde que iniciou a operação esse número estava fixo na casa do 35%. Independente das mudanças operacionais, novos procedimentos, o número estava lá, impassível. Desafiando-o. “Previsão de Lucro com perdas: R$ 513.671,00”. A linha seguinte tem o peso da mão de Mike Tyson desferindolhe um “jab” que lhe abre o supercílio e fere seus brios: “Lucro Perdido no mês: R$ 270.561,00”. Daniel faz cara de desgosto consigo mesmo. Salva o arquivo. Abre um arquivo Word, intitulado: “Email para ligação da TV”. Copia, cola na tela do Outlook. Anexa o arquivo “Esquema de ligação”. 60 Faz algumas alterações. Por fim, relê: Prezados senhores, Gostaria de confirmar que hoje, 3 de abril, conforme previamente combinado, será feita a remoção dos seguintes itens do apartamento 807 do hotel Promenade Volpi, localizado na Rua Levindo Lopes, 231. A recepção irá lhe providenciar as chaves para aberturas dos cabos de segurança dos aparelhos. 1 TV Sony modelo KDL-40EX524. Essa TV tem uma adaptação especial para o dispositivo Kinect do Xbox. Esse dispositivo está acoplado por um cabo diretamente à TV, não sendo possível removê-lo (para evitar furtos). 1 Sony Blu-Ray BDP-S370 1 Microsoft Xbox 360 1 mala Samsonite preta. 1 quadro grande, espelhado, “Make Up Store”. 4 quadros pequenos, de ficar em pé, “Make Up Store” 1 mala grande, transparente, contendo amostras dos produtos “Make Up Store”. Essa mala está lacrada – o hotel não tem a chave. Todo o equipamento deve ser levado para o Max Savassi Hotel, localizado na Rua Antonio de Albuquerque, 335, apartamento 912. A mala Samsonite tem um acolchoado especial para o transporte do Xbox, do Blu-Ray e dos quatro quadros de mesa. Cuidado especial deve ser tomado com o quadro grande, que é frágil por ser de vidro. Segue incluso o esquema detalhado de como efetuar a ligação 61 dos cabos. Note que para assegurar o funcionamento correto deste modelo de DVD, juntamente com o Xbox, a ligação deve ser feita exatamente conforme consta no modelo anexo. Sem exceções. A TV deverá ficar posicionada de frente para a cama para que o hóspede possa confortavelmente assistir TV deitado. O hotel irá fornecer um suporte adequado para os dispositivos, caso já não exista algo. Deixe a mala à vista em um canto do quarto. O quadro deve ser posicionado na cabeceira da cama – substitua o quadro existente, colocando-o atrás do sofá da sala. Deixe a mala com as amostras “Make Up Store” em cima da mesa da sala. Os quadros pequenos também devem ser colocados na sala. Assegure-se que o acesso à internet funciona utilizando o navegador da TV. Deve ser possível visualizar os vídeos do YouTube. A senha e detalhes para conexão à internet serão disponibilizadas pelo hotel. Conforme combinado, metade do preço de instalação já foi depositada na conta indicada. O depósito tem o número 453223476. A outra metade será depositada uma vez que o técnico ligar, estando na frente da TV, com tudo funcionando, para o número (11) 3231-5459. Esse controle é imprescindível para nós, e sem ele não nos será possível autorizar a segunda metade do pagamento. Atenciosamente, CLB Representações Rua Senador Paulo Rocha Beltrão, 365. São Paulo, Capital. 62 “Mais claro que isso, impossível”, pensa Daniel. Nos últimos meses, havia reescrito esse e-mail uma dezena de vezes. Aparentemente, não importava o que ele escrevesse. “Somente uma vez alguém deve ter se dado ao trabalho de ler e fez tudo certo de primeira. Um conectou tudo da maneira dele. Quase queimou a TV. O outro, telefonou já estando de volta ao escritório, no final do dia. E um outro, esse ganha o prêmio, colocou a TV virada para a parede!”. “É o fator humano”, pensou. Em todos esses casos, conseguiu contornar. No pior deles, chegou a perder quatro dias de faturamento. “Empresa filha da puta”. Mas no final das contas, dava certo. “As mulheres dão muito mais problemas. Precisava diminuir, radicalmente, o percentual de erros nessa área. Mas como? Cadê o manual de instruções?”. E pressionou o botão de enviar. O e-mail, entretanto, não foi enviado imediatamente. Daniel havia programado uma regra no seu Outlook que impedia que e-mails de certas contas fossem enviados entre as 2 horas da manhã e antes do meio-dia. E já eram 2h30 de domingo. O e-mail só seguiu ao meio-dia e um segundo. * * * Marcos acorda. Um leve zumbido na cabeça, um leve gosto de guarda-chuva na boca. Está sozinho no quarto. Lembra-se de ontem à noite. “Pequena Viagem à Ásia”. Filme com todo mundo, “Harry Potter”. Aquele em que o velho morre. Dumbeldorf. “Tá bom. O cara é o maioral dos maiorais e morreu assim, fácil daquele jeito. Me engana que eu gosto” professou no final da exibição. As meninas riram da 63 cara que ele fez. Cara do velho morrendo. Lembra que tomou umas “cervejinhas”. Vanessa só o acompanha na primeira taça – sinal de que ele deve ter bebido a garrafa de vinho toda, mais as cervejas. Olha o relógio, ainda é cedo. 8h30. Vai na suíte, dá uma lavada no rosto, escova os dentes. Toma água. Ele mantém uma cacimba dessas de barro no quarto. É a água mais gostosa da casa. Às vezes, quando a trepa foi boa, toma a água pelado, suado. Vê-se como um touro. Não! Como um guerreiro. E na cama, sua mulher olha com aqueles olhos de aprovação como que dizendo: “Você é o melhor!”. Nessas horas, a água da cacimba é a melhor do mundo! Sai, vai na sala. Não se engana. Vanessa está no sofá da sala. Ele já sabe que roncou. Às vezes ela o acorda para que ele vá para o sofá. O problema é que com frequência ele não acorda, ou dá muito trabalho. Ela acha mais fácil ir ela mesma. Ele dá um beijo no rosto dela, que se vira pro outro lado. Ele enfia as mãos por debaixo e a carrega para o quarto. Vanessa se aninha, gosta de ser carregada. Mas, ao mesmo tempo, queria ter ficado no sofá, “tava muito gostoso lá”. Ele o coloca na cama com cuidado. Tranca a porta. Posiciona-se ao seu lado, começa a beijar-lhe o seio. Ultimamente, tem pensando muito na fase da amamentação. Adorou vê-la de seios grandes. Ficou muito sexy. Ele a irritava, dizendo que isso era injusto. “Imagina se, um belo dia, meu potente ficasse três, quatro centímetros maior. E você se acostumasse com isso. De repente, ele volta ao normal. É injusto!”. Eles riam. Após a segunda gravidez, ele teve de tomar muito leite dela. O bico do seio, principalmente o direito, entupia. Tinham de botar compressa quente e ele sugar para não inflamar. Ele sugava e 64 ela gostava. Ele gostava também. Uma vez falou: “Eu bebo seu leite, porque você não bebe o meu?”. Ela respondeu: “Porque você é um tarado pervertido e eu sou normal”. Os dois riram: “Pelo menos eu nunca mais gripei, seu leite é forte. Tem seus anticorpos, você nunca fica doente”. Vanessa nunca se sentiu tão mulher quanto na época que estava com os peitos crescidos. “Sentir a Verônica sugar é uma coisa, você é outra”, assim ela definiu. A filha, recém-nascida, era um ato de amor. O marido sugava diferente, era sexual. Ela se molhava. Ficava sensível a qualquer toque. Marcos adorava quando ela vinha por cima, cavalgando. Os seios, cheios de leite, começavam a vazar. Aquele líquido quente pingava no peito dele. Delícia. Diferente. Sacana. Ele apertava os seios dela, ela cavalgava. Há muito ele descobriu que, na região entre a virilha e umbigo dela, existia um lugar especial. Ele segurava-a pelos quadris, pressionava os polegares nessa região. Sentia a respiração dela ficar cada vez mais ofegante até que os polegares finalmente sentissem pulsações em ritmo agitado. A vagina relaxava um pouco a pressão. Ela havia gozado. Mas, agora, mesmo essas lembranças não foram suficientes para trazer-lhe o tesão. Ainda estava sob o efeito do álcool. Pensou em Sandra. Pensou em dois tipos de mulher: Aquelas que ele já teve e aquelas que nunca teve. Pensou nas suecas. Aquela que bateu na porta dele enviada pela amiga. “Foi a mulher mais fácil que já comi na vida. Achei até que fosse algum trote.” Josie? Johanna? Ah, teve aquela outra que também foi fácil, Karita. “Fui bonito uma época”, pensou. Historicamente falando, sempre teve que “se esforçar” para conseguir mulher. Tinha de levar pelo papo. Seu primo Gui, por 65 exemplo, tinha uma época que pegava qualquer mulher fácil. Era só aparecer e faturar. “Hoje, não pega nem resfriado”, pensou. O primo Gui provavelmente teve sua fase áurea entre os 16 e os 18 anos. A sua havia sido mais tardia. “A minha fase de ser bonito começou em 1996, quando eu tinha lá meus 27 anos. Ou vai ver, é o mesmo caso da Vanessa, fiquei mais bonito porque a competição ficou mais feia.” Volta a pensar em Vanessa, passa para a posição de conchinha e levemente lhe acaricia o sexo. Vanessa deixa-se tocar, mas finge dormir. Passa a mão na bunda de Vanessa. É uma bunda fantástica, firme. E lisa. Sem imperfeições na pele macia. O membro continuava lá, impassível. Igualzinho a Vanessa, virado pro outro lado e fingindo dormir. A bunda o fez lembrar da lituana novinha. Da fase áurea. Ela tinha 18 anos, ele tinha 28. A essa altura já tinha meio que trocado de faixa etária em termos de mercado-alvo, saído da faixa dos 18, passado para a faixa dos 22 a 25. Ela era muito ruim de cama. Totalmente inexperiente. Mas o corpo era maravilhoso. Era bem alta, tinha o cabelo longo, louro e muito cacheado. As pernas eram longas. Ela era atleta. Dançava também. A bunda era aquilo que toda bunda aspira ser. Lembrou dela nua. Ela gostava de tudo bem tradicional. Não tinha peitos. Um detalhe é que ele a comeu, diferentemente de todas, sem camisinha. Ela era muito nova, muito gostosa. Começaram com camisinha, mas ao iniciar o vai e vem não teve jeito. Precisava comê-la sem nada. Ela topou, mas pediu: “Goza fora, tá?”. Na hora H, ele tirou e jorrou. Geralmente, gozava relativamente pouco. Nesse dia, baixou nele o espírito do Peter North. Ejaculou rios. Com força, com pressão. As golfadas foram direto ao rosto, cabelo, travesseiro. 66 Fizeram um caminho de leite, saindo da parte logo acima da vagina e encharcando-a. Agne “sem s” era o nome dela. Não colocou a mão na frente, tentando se proteger. Não desesperou. Esperou ele terminar os espasmos do gozo. Fechou os olhos. Ficou assim um tempo. “Acho que ela curtiu, e muito, estar toda suja de esperma. Estranho, para alguém tão tradicional. Talvez ela escondesse algo.” Ele ali, ajoelhado, admirava aquela visão extremamente sexy do corpo branco, jovem, duro, molhado do seu leite. Ainda nessa posição, Marcos esticou-se e pegou uma toalhinha, que estava em uma cômoda perto da cabeça dela. Ela continuava de olhos fechados. Colocou a toalha na sua mão. Ela não ria, mas estava com cara de felicidade. Passou a toalha no rosto. Abriu os olhos azuis. Um azul profundo. Olhou-o fixamente e disse: “Uau!”, enquanto secava o resto do corpo. Depois disso se viram ainda umas quatro vezes. Ela aparecia no quarto estudantil dele, fazia a viagem de barco para Estocolmo. Chegava lá na sexta à noite, com uma sacolinha de hippie na mão. Ia embora domingo de avião. Ele custeava as passagens dela. A lembrança desse orgasmo gigante finalmente causou algum resultado e o velho companheiro dá sinal de querer sair da prostração. Masturba-se um pouco. O pênis ainda está a meia-bala, mas talvez fosse o suficiente. Marcos pega o tubinho de lubrificante KY. Passa um pouco no dedo, volta a acariciar Vanessa, preparando-a, mas ela continua “dormindo”. Tenta penetrá-la. É difícil. O pênis está muito mole. Força, fica frustrado. Masturba-se um pouco. O dito volta a 50% da energia. Tenta de novo. Pensa em desistir. Pensa no gozo. Agne molhada. Chupando-o. Só que ela nunca o chupou. Nunca fizeram oral. Pensa, então, na tal 67 de Josie. Ou Johana. Ela chupou até o talo. Ah, lembra-se da russa. A do “cocktail”. Era uma das únicas palavras que eles tinham em comum. Ela não falava nada de inglês. Ele não falava nada de russo. Um total impasse. Então o negócio era ficar mudo e trepar, porque pra isso não precisava de língua. Aliás, língua, precisava. Não precisava era de falar. Mas “cocktail” ela sabia. E queria muito do “cocktail” dele. E ele deu. “Aquela gostava”. Sente o pênis dar um arranco. Consegue penetrar. De início é meio desajeitado. Mas com o tempo, o membro chega nos 70% de energia e a coisa engrena. Ficam ali, de ladinho. A posição do dia de semana pela manhã. A posição sem esforço. Vanessa começa a respirar mais profundamente. Marcos sabia que, provavelmente, não iria aguentar muito. Coloca a mão e fica sentindo se Vanessa goza. Ali, perto da virilha. O polegar agora nas costas dela e os outros quatro dedos monitorando. Esperando o espasmo. Sente que está chegando perto de gozar, mas a Vanessa ainda nada. Nas condições de temperatura e pressão desta manhã, não acredita em segundas. Não vai rolar. Está a um minuto do orgasmo. Melhor frear. Começa a pensar reverso. A pensar na fome. Nas crianças negras cheias de mosquitos dos comerciais para doar dinheiro. Mas vê Agne rindo pra ele, dizendo “uau” e não tem como segurar mais. Por sorte, meio segundo após o seu primeiro espasmo sente os quatro dedos da mão esquerda vibrarem num ritmo diferente do seu. Havia satisfeito a fêmea também. Sente-se feliz. Fica dentro dela, aninhase mais ao corpo dela. Beija-a na nuca. Dormem de novo. As 10 horas as filhas batem na porta. Não entram sem permissão. “Vamos gente”, elas gritam do lado de fora. Marcos acorda, 68 sente-se bem melhor. “Tô novo”. Domingo de sol. Domingão. Dia de clube. “Vamos lá, minha nega”, disse Marcos. Vanessa resmunga. Ele levanta-se, coloca uma cueca, veste um roupão. Está muito calor. Felizmente é um roupão leve, não daqueles felpudos. Até uns meses atrás, teria ficado só de cueca. Agora, começava a ficar meio consciente de que as meninas talvez não gostem de ver o pai seminu. Uma vez, Vanessa lhe disse que detestava o pai andando, de cuecas, pela casa. As meninas ainda trocavam de roupa na vista dele. Era uma fase meio estranha. Não tinha imaginado que ele de cuecas seria algo “chato” para as meninas. Vanessa disse que ela gostava de vê-lo de cuecas, mas que quando tinha a idade das meninas não curtia ver o pai assim. Marcos lembrou-se de quando era pequeno. O pai dele, isso ele devia ter uns 7 anos de idade, corria pelado pelo apartamento. Cedinho, tipo 5 horas da manhã quando todo mundo dormia. O pai corria no mesmo lugar, corrida estacionária. Mas de repente, ele saía para dar uma volta. A sala era relativamente grande, então ele fazia um contorno pela sala. Passava pelo hall, ia para a cozinha. Fazia uma meia-volta lá. Mantinha-se uns minutos, correndo no mesmo lugar. Voltava para a sala. Pelado. Peladão. Foi a primeira vez que viu um pênis adulto. “Um pênis não, um pau. Era um pauzão, com uma cabeçorra. E muitos pêlos.” Afinal, era 76, 77. A moda era natural na época. Fecha os olhos. Tenta imaginar o pai, correndo. Ele, acordando com um “tum, tum, tum”, indo ver o que era e dando de cara com o pai peladão com um pauzão pra cima e pra baixo. “Como será que ele conseguia, acho tão desconfortável”. Entendeu tudo. “Aaaah... Foi isso. Foi trauma. Por isso ele era assim, 69 do jeito que era. Tarado, obsessivo, compulsivo, querendo gozar a torto e a direito. Em vez de ficar quieto em casa. Queria sair por aí, trepando. O trauma de ver o pai, com um pauzão deve ter deixado profundas cicatrizes emocionais em mim. Vai ver olhei pro meu e fiquei com dó de mim. Tá explicado. Freud explica tudo, né?”, pensa para si. Seus pensamentos são interrompidos quando Verônica, com seus 8 anos, corre para abraçá-lo. Dá um grande abraço. Ele beija a cabeça loura dela. Era uma menina linda. Magra. Valéria vê isso e vem logo também. Era ciumenta. Ciumentíssima. Não podia ver a irmã chamegando com o pai que também queria. Ele aproveita o momento. Está consciente que momentos assim estão com os dias contados. Pergunta alto, do jeito que sempre faz: “Alguém quer smörgåsbaren?”. Smörgås era sueco para sanduíche e baren era, obviamente, bar. Bar do Sanduíche. Tinham também um desses liquidificadores de mão Braun Minipimer que chamam de Braun Minigui. Uma homenagem ao primo Guilherme, que lhe deu o aparelho de presente de casamento. O mesmo primo que havia meio que “demandado” dele um conjunto de sala. Sofá grande, duas poltronas e mesa de centro. Couro legítimo, claro. Na época do casório de Marcos o primo Gui trabalhava de gerente de uma concessionária Fiat em Belo Horizonte. Dizia ser gerente, mas não se sabia exatamente o que ele gerenciava. Gerente-geral não devia ser. Mas estava bem. Trocou de carro. Um Fiat, claro. Mudou de apartamento. Mas, pelo visto, não tão bem para algo melhor que um Minipimer. Que, por sinal, nem Braum legítimo era, era das cópias baratas, pifou logo. 70 O Minigui estava na segunda geração, servia para fazer vitamina. Vitamina com leite, banana, iogurte, sorvete. A sanduicheira era nova e já estava na quinta geração: tinham ganhado de brinde do Estado de Minas. Essas sanduicheiras quando não pifam, o teflon começa a sumir. Aí fica a dúvida: “Pra onde está indo o Teflon? Se ele tá sumindo, tá indo pra algum lugar. Não está evaporando.” Melhor não perguntar. Depois que inventaram o Teflon, o telefone celular e os adoçantes, o número de pessoas com câncer aumentou consideravelmente. As duas meninas levantam as mãos, entusiasmadas. “Adoro smörgåsbaren” fala Verônica. Vanessa completa: “É o melhor do final de semana”. “Qual vai ser o sanduíche?”, elas perguntam quase em uníssono. “Hoje teremos o ‘Clássico’”. Para tudo Marcos tinha dado nome. Era uma marca registrada sua. Talvez, depois que morresse, as meninas se lembrassem dele, das manias de nomes. Vai ver manteriam os nomes para os netos delas. Imortalizando-o. O “Clássico” era um sanduíche de queijo e presunto de peito de frango, tipo misto. Porém, com um ovo frito dentro. O segredo era fazer o ovo virando-o na panela. Deixar só o meiozinho do ovo ainda mole. Para escorrer, quando mordido, mas só um pouquinho. O pai de Marcos sempre fala que não existe nada mais difícil de fazer que ovo frito. Era infalível. Bastava alguém falar algo sobre culinária que seu pai dizia: “Não tem nada mais difícil que fazer ovo frito”. O que, obviamente, é uma coisa sem sentido. Existem milhares de empregados no McDonald’s fazendo milhares de ovos fritos mundo afora. Perfeitamente redondos. Nem por isso eles são chefs de cozinha, muito longe disso. Já havia dito isso ao pai. Mas o pai era igual àquele 71 personagem do filme “Casamento Grego”, que sempre dava conselhos de colocar limpador de vidros em tudo. No caso em questão, era fixado em ovo frito. Mas o velho tinha um humor interessante. Certa vez, a mãe tinha feito um bacalhau em casa. A família estava toda reunida, e ela, após todo o trabalho de fazer bacalhau para 20 pessoas, recebia as felicitações por um prato tão delicioso. Foi aí que o pai interrompeu e disse: “Mais do que saber fazer, é saber comprar o bacalhau”. “Pensando bem, com uma família dessas, eu até me saí bem”, pensou Marcos, enquanto prepara os próximos dois “clássicos”, um para si outro para Vanessa que faz o café. Vanessa sempre faz o café. Vira-se para a turma e pergunta: “A que horas vamos hoje para o clube”? * * * Próximo à piscina, de olho nas meninas que estão nadando, Vanessa estica-se em uma espreguiçadeira do Minas Tênis Clube, o mais tradicional de Belo Horizonte, fundado em 1935. Sua sede original na Rua da Bahia – hoje conhecido como Minas I, para diferenciar das outras unidades – fica próxima à casa dos pais de Marcos. Entretanto, ele só passou a frequentá-lo como sócio após seu casamento com Vanessa. Durante o namoro, ela frequentemente tinha de arraigar convites junto às amigas para poder levá-lo ao clube que ela frequenta desde que se entende por gente. Ela sempre diz que não aprendeu somente a nadar no clube: “aqui eu primeiro aprendi a andar”. Seu pai havia feito parte do conselho do clube no início dos 72 anos 90 e ainda era muito conhecido. Vanessa herdou grande parte das amizades do pai e estendeu-as. Era raro vê-la sozinha no clube. Estava sempre rodeada de pessoas. Depois que montou o bufê passou a ver o clube ainda com mais importância. Além de ponto de lazer e de encontro, o Minas passou também a ser uma importante ferramenta de marketing. Sempre discretamente. Não fazia isso de forma afetada. Seu amor pelo clube, pelo sol, por poder confraternizar com sua extensa roda de amigos, brincar com as crianças era legítimo. Mas ela nunca esquecia de levar seus cartões de visita, que ficavam sempre bem acessíveis na bolsa e eram prontamente sacados caso alguém mencionasse que “estaria interessado em saber mais”. Sempre aparecia alguém apresentando um novo conhecido e, naturalmente, o papo fluía e ela dizia: “Aqui, meu cartão para você não esquecer”. Às vezes, ela notava Marcos atento aos seus movimentos. Seguindo-a de longe com olhar, bem disfarçadamente. Não raro, se era um desconhecido, ele se aproximava, dava-lhe um beijo e se apresentava: “Olá, sou Marcos, marido dessa menina bonita aqui”. Quando o sujeito ia embora, ele falava: “Vi você dar seu cartão pra ele, que foi?”. Ela retrucava: “É, ele falou que está pensando em fazer o aniversário da filha de 15 anos. Precisa fazer uns orçamentos”. Ele olhava pra ela e dizia: “O que ele quer é orçar a sua bunda”. Ela retrucava, rindo: “Lá vem você com essa história de que todo mundo quer a minha bunda. Se fosse assim, nem bunda eu tinha mais de tanta gente que já tirou pedaço”. Na verdade, ela sabia que o novo conhecido provavelmente não iria fazer festa nenhuma. Depois de tantos anos, sabia que em 90% dos casos isso não daria 73 em nada. Muitas vezes, as pessoas falavam para “ficarem bonitos na foto” ou “passarem a impressão que têm grana”. Principalmente no caso das mulheres. Os homens, muito contavam essa história porque queriam, realmente, a bunda dela. Mas ela sabia que homem para ela era Marcos. Não apenas supunha isso, mas sabia de fato. Aprendera isso a duras penas. Não que se arrependesse de tudo que aconteceu. Ela precisava ter passado essas provas para ser a pessoa que era hoje. Custou a perder a virgindade, e essa foi a parte fácil. Difícil foi relaxar. Tirar o sentimento de culpa, de estar fazendo algo errado da cabeça. Nos primeiros seis meses de sexo, sentia-se culpada. Transava, mas não gozava. Não com a penetração. Marcos fazia-a gozar com a língua, com os dedos. Com o tempo, foi acostumando com a ideia. Passou a sentir menos culpa ou talvez porque já tivesse 21 anos e as atenções dos pais agora se concentrasse mais nos irmãos menores. Os pais deviam suspeitar que ela já transava com Marcos depois de dois anos de namoro. Naquela época, com toda a sacanagem das novelas, com tantas notícias de meninas de 15 anos engravidando eles deveriam saber que a filha deles não era a última virgem de 21 anos do Brasil. Não num país que tinha passado a novela “O Dono do Mundo” dois anos antes. Aquela do Antônio Fagundes bem mais velho comendo a Malu Mader ainda novinha antes do casamento dela. O sexo foi evoluindo. Começaram a fazer pequenas viagens juntos, sem a companhia dos pais. Um casamento de uma amiga em Pirapora. Um baile de formatura de um primo dele em São João Del Rei. No final de 93, as transas estavam boas. Transavam várias vezes numa 74 noite. Marcos gozava muito. Ela via isso como natural. As amigas da faculdade falavam muito de sexo. Um dia, uma comentou que o namorado dela era muito viril: às vezes conseguia dar três numa noite, caso dormissem juntos no motel. As outras meninas não se fizeram de rogadas e se gabaram que os namorados também eram assim. Vanessa pensou consigo: “Eta turma de brochas”. Sabia que qualquer homem normal dava várias consecutivas: via isso nos filmes pornôs nos motéis, sempre quando Marcos ia tomar banho. Ou então quando ela voltava do banho e Marcos estava assistindo. Ela se aninhava nos braços dele e fingia que não estava olhando, mas acompanhava pelo reflexo do espelho, ou olhava de soslaio. Não queria que ele a visse curtindo um filme desses. Tinha começado a gostar de sexo, mas ainda tinha medo de ser puta. “Tenho medo de ser puta.”, disse para a analista. No final de 95, o namoro ia muito bem. A vida sexual, por outro lado, nem tanto. Ela havia começado a fazer análise. Sabia que tinha complexo de certinha. De menina perfeita. Daquela que é a mais popular na escola, no clube. Na família também. Era o centro das atenções. Gostava disso. Quando era pequena era a mais franzina, a menorzinha. Era uma gracinha, mas ninguém dizia que era linda. No ginásio, a mesma coisa. Era a chefe de turma, fazia parte da comissão de formatura. Mas era miúda, pouco desenvolvida fisicamente. Os rapazes queriam as potrancas, de peitão. Continuava sendo a mais simpática. Depois dos 18 anos ela sentiu a coisa mudar. Na universidade, no clube, os peitos das potrancas começaram a cair. A celulite começou a aparecer. Os pés de galinha começaram a ficar visíveis. Com 20 75 anos, ela ainda tinha cara de 15. Uma carinha inocente. Começou, pela primeira vez, a se sentir desejada. Homens das mais diversas idades começaram a olhar para ela com um novo brilho nos olhos. Mas sempre namorara Marcos. O namoro já durava mais de quatro anos, entrando para o quinto. Ambos se formariam no ano seguinte. A família, os amigos, todos começaram a perguntar quando ficariam noivos. Quando seria o casamento. Sentia-se encurralada. A analista perguntou: “Mas qual o problema de ser ‘puta’ para seu namorado?”. Era uma pergunta óbvia, de resposta óbvia. A resposta lógica era “nenhum”. Tinha total certeza disso. Não era idiota. Mas o buraco era mais embaixo, mais psicológico. Ela temia, ou melhor, sabia que se fosse ‘puta’ isso destruiria a sua imagem. A imagem que Marcos tinha dela. A imagem que ela tinha de si mesmo. Havia chegado ao seu limite sexual. Não queria ultrapassar certas barreiras. Não queria ser igual às mulheres dos filmes. Ou melhor, talvez no íntimo quisesse sim. Queria experimentar isso. Mas não sabia como. Nunca conseguiria fazê-lo com Marcos. Marcos era sua cara-metade, sua alma gêmea. Eles terminavam frases um do outro. Eles sempre diziam um para o outro em tom de gracejo: “Você sabe, a gente tem que dar um desconto porque nesse mundo só nós dois somos normais”. Se mostrasse seu lado negro, os pensamentos que às vezes lhe passavam na cabeça, esse encanto se quebraria. Um papai e mamãe, uma posição de cachorrinho, sexo oral. Estava ótimo assim. Começou a minimizar os programas íntimos e focar nos programas sociais. Com tantas festas de aniversário, casamento, formaturas, por vezes ficavam um mês sem transar. Quando acontecia, era uma transa gostosa. Marcos 76 sempre queria mais. Sentia que ele nunca estava totalmente satisfeito. Ela dizia: “Domingo temos de ir na casa da Fátima, vamos fazer um fondue lá. Mas semana que vem a gente transa, tá? Sem falta”. Inevitavelmente, a paciência de Marcos se esgotou. Ela sabia até a data em que isso aconteceu. Foi em 1º de março de 1996. Era uma sexta-feira. Tinham preparado todo um esquema para passarem o final de semana em Ouro Preto. Ainda davam desculpas para os pais dessa forma. Inventavam histórias, sabendo que os pais estavam mais que cientes que eles transavam. Depois de cinco anos, seria impossível. Mas agiam conforme manda o figurino da boa família mineira. Nesse dia, ela deu aula de aeróbica e acabou atrasando. Saíram bem mais tarde do que o programado de Belo Horizonte. Só foram chegar a Ouro Preto relativamente tarde. Passava das 11 da noite. Estava muito frio. Não tinham levado roupas adequadas. Marcos entrava e saía das pousadas e repúblicas, todas lotadas. Não era carnaval. Mas algo devia estar acontecendo na cidade para estar tudo lotado assim. Nunca souberam o que foi, que festividade era. Por fim, Marcos não teve alternativa senão dar um enorme “upgrade” no hotel. Pegaram um quatro estrelas, bem acima do orçamento deles. Quando entraram no quarto, estavam congelados. Tomaram uma ducha bem quente juntos. Foram para a cama. Eles não transavam há muito tempo. Ela fez um sexo oral nele, levando-o rapidamente ao orgasmo. Ele depois a penetrou. Ela demorou muito a ter orgasmo. Ele se conteve e esperou, gozando logo depois dela. Ele ainda queria mais. Vanessa sentiu isso, mas optou por fingir que não entendeu a deixa. Ignorou-o e fingiu que dormia. No sábado, estava 77 um clima estranho. Marcos estava pensativo, distante. No domingo, ao voltarem a Belo Horizonte, eles comeram uma pizza na Pizzarella da Olegário Maciel. Terminaram ali. Nos meses seguintes, se viram umas vezes. Conversaram. Nunca voltaram. Ambos iriam se formar em julho. Marcos havia falado, há muito, que gostaria de ir à Europa. Estava juntando dinheiro. O namoro terminando, não havia mais motivos para não ir. Era um sonho antigo. Talvez agora ele fosse mesmo. O que nunca foi falado, no entanto, foram os verdadeiros motivos. Um deles, o mais óbvio, era que Marcos queria mais sexo enquanto Vanessa havia chegado ao seu limite qualitativo e quantitativo. Isso os dois sabiam, era óbvio. Mas também havia a questão da idade. Ambos sentiam-se encurralados. Marcos via-se casando com Vanessa, mudando-se para um apartamento de dois quartos. Fazendo sexo duas vezes por semana. Ele conhecia os Estados Unidos e Canadá, mas queria viajar mais. Conhecer a Europa. Talvez estudar lá. Fazer algo mais com sua vida. Já Vanessa queria experiências. Descobrir seu corpo. Imaginava que, se trocasse de parceiro, conseguiria se soltar. Que tudo era devido a sua sintonia com Marcos. Ele a conheceu, certinha, agora não tinha como mudar. Queria ser diferente. Ousada. Com outro homem conseguiria. Tinha certeza disso. Passadas as festividades de formatura, pela primeira vez na vida, Vanessa encontrou-se “órfã” em Belo Horizonte. Com 24 anos sentia-se inexperiente. Havia vivido dentro de uma redoma. Todas as amigas estavam com namorado, inclusive sua melhor amiga estava se casando. A vida social, sem um namorado e sempre sendo a estepe, minguou. Voltou a dar aulas de inglês enquanto procurava 78 emprego na área de comunicação. Sem namorado, nem dinheiro para sair tinha. Estava com vergonha de pedir ao pai. As amigas a chamavam para sair: “Vou levar o amigo do Renato para te conhecer. Ele é uma gracinha”. O amigo do Renato era um porre, um tipo chato. Ela tentava puxar conversa, mas faltava assunto. Justamente ela, que era faladeira. Com Marcos, nunca tinha faltado assunto. A salvação, naquele momento, foi o clube. No Minas I, Vanessa começou a paquerar. Em pouco tempo, a notícia de que Marcos e Vanessa não eram mais um casal estava mais divulgada do que se tivesse sido impressa no jornalzinho do clube. Grandes amigos de Marcos, sabendo que ele agora estava, literalmente, bem longe, começaram a aparecer no Minas. Muitos deles nem sócios eram. O preço do convite no mercado negro para os domingos na unidade I deve ter explodido durante aquele mês de julho. E olha que foi um mês muito frio! Até o primo Gui, que sempre dizia ter um conhecido no clube mas nunca havia sido visto por lá, resolveu dar as caras. Apareceu duas vezes, com um papo furado. Marcos dizia que ele tinha sido um grande Don Juan. Mas, 30 quilos depois, ele estava mais para Don Quixote, aquele que vivia das histórias do passado, do que para Don Juan. Ele Vanessa cortou. Com classe, claro. Estilo Vanessa. Com um grande sorriso nos lábios de tamanho médio, mas carnudos. Os dentes brancos. Não eram retinhos. Um dente era inclinado. Isso, mas que um defeito, era um charme. Os outros pretendentes ela deu corda. Curtia ser desejada. Um dia chegou aos seus ouvidos, através de uma amiga, que corria o boato de que era quente na cama. Nunca se sentiu tão bem na vida. Mas, na verdade, 79 há meses, desde 1º de março, não transava. Às vezes se masturbava. Tinha escondido, em casa, um vídeo pornô. Assistia quando todos saíam de casa. Uma vez, quase a pegaram. Conseguiu colocar as roupas e esconder o vídeo debaixo do travesseiro a tempo. Aliás, a mãe suspeitou. A mãe até hoje não entendia porque ela tinha terminado com o Marcos. Na verdade, temia que a filha fosse como ela. Porque ela dizia que se casou virgem, o que não era uma mentira. Mas ela era da época que dava-se uma outra coisa para não precisar perder a virgindade. Dava-se atrás. De quebra, ainda não corria o risco de engravidar. “Tempos bons!”, pensava com saudade da juventude. Finalmente, em setembro ela decidiu que era hora de acabar com o celibato. Tinha um dos caras do clube, um tal de Juliano, que parecia ser o certo. Ele era todo saradão. Um desses que, no passado, nunca teriam olhado para ela e que agora estava babando. Começaram a sair. Ela esperou o quarto final de semana, exatamente um mês para dar para ele. Mas o rapaz era fraco. Gozou duas vezes, com uma grande pausa entre os orgasmos, e o gás acabou. Não conseguiu fazê-la gozar. Ela creditou ao fato de ser a primeira vez. Estavam ambos nervosos. Após três meses de namoro, haviam chegado ao mesmo ponto que ela tinha com Marcos. Com a diferença que ela quase nunca gozava. Ela geralmente tinha de terminar, em casa, sozinha, o serviço que ele começava no motel. Também não conseguiu ser puta com Juliano. Talvez precisasse mudar de tática. Ou de cabeça. De repente, Marcos encosta uma latinha de cerveja Skol geladíssima nas suas costas, provocando-lhe um gritinho. “Vou falar pras meninas saírem da água e logo depois a gente vai almoçar, tá certo”? 80 Diz Marcos, sem esperar resposta e já caminhando para a beira da piscina falando alto: “Valéria, Verônica, queridas, saiam da água. Vamos pegar a bóia, o rango”. * * * Jarbas Coelho, o Lindim, abre a porta do quarto 712. Um rapaz novo, de pouco menos de 18 anos entra no quarto e mantém a porta aberta. Ele está com um macacão com o nome “Eletro Bréscia” costurado nas costas. A costura já se desprendeu em alguns lugares, formando uma espécie de abertura quando o sujeito curva as costas. Lindim nota isso e pensa “se eu usasse um macacão desses, talvez eu pudesse esconder meus cigarros ali”. Tinha dito para a esposa que havia parado de fumar. Era um casal novo, ele tinha 22, ela, 24. Ele era recepcionista no hotel Max Savassi. Ela era, pasme, ascensorista do Shopping Boulevard. Eles riam juntos do emprego dela. “Será que tem alguém que ainda não sabe andar de elevador?”. Ele zombava dela. Tinham uma vida dura. Mas eram jovens, sem filhos. Ganhavam pouco. As coisas iriam melhorar, pensa ele enquanto empurra um daqueles carrinhos porta-malas de hotel para dentro do quarto. O do macacão começa a tirar as coisas do carrinho. “Puta TV, hein?”, diz Lindim. O “Bréscia” retruca: “último modelo. Deve ser cara pra carai. Mas aqui, tô vendo que ali no quarto já tem uma TV”, diz ele, espiando o quarto, que fica separado da sala. É um quarto de hotel com dois aposentos. Em um, o quarto com a cama. No outro, a sala de estar com sofá, uma mesa 81 de refeições e uma pequena cozinha. O rapaz da elétrica tira do bolso um papel. “Tá mandando colocar ela no quarto.” Os dois levam a TV para o quarto. É uma dessas TVs planas. Em cima dela, o Kinect da Xbox faz com que os dois tenham que ter ainda maior cuidado ao carregar o aparelho. Colocam a TV em cima da cama. “Bréscia” rapidamente conclui, olhando a TV existente no quarto, que não será possível substituí-la. Isso porque a conexão da TV a cabo é feita diretamente dentro da TV – não existe conector para desenroscar. “Quase todo hotel é assim para evitar que o pessoal roube a TV”, pensa. “Se não for assim o povo leva até os fios”. Ele relê o papel que tem na mão. “Conforme o cara tá pedindo num rola”, diz ele para o sujeito do hotel que está parado, olhando-o. “Vamo fazê o seguinte, vamo levá a TV pra sala. A gente coloca na mesa de jantar”. Levam a TV para a mesa de jantar. “Vou aproveitá pra dar uma fumada agora. Tô à toa mesmo”, pensa Lindim. No mesmo instante, o telefone do apartamento toca. Lindim atende: “Não, tô aqui com o cara da elétrica.”. Fica mudo uns instantes, pergunta pro “Bréscia”. “Aqui, você vai demorar muito?”. Ele responde: “Acho que pelo menos uma hora. Nunca mexi com essa TV. Vai ser foda configurar a internet dela”. Lindim fala no telefone: “Uma hora”. Fica mudo. Desliga o telefone. Vira pro sujeito da elétrica e fala: “Aqui, o chefe pediu para eu dar uma mão lá embaixo porque chegou um tanto de hóspede. Ele falou que é pra você ficar aqui no quarto, não sair. Sabe como é, a gente não pode confiar hoje em dia, né?”. “Bréscia” responde: “Beleza, chefia”. Mais de 40 minutos depois, Juca, outro recepcionista do hotel, 82 abre a porta do quarto 712. Um jovem de macacão está falando ao telefone celular. “Já coloquei o quadro conforme o senhor pediu. Tá bem atrás da cama”. Juca vê um grande quadro espelhado em cima do sofá da sala. Nele está o mapa-múndi com uns países em vermelho. Está escrito “Make Up Store”. O rapaz diz: “Mas co???”, e interrompe a frase. Fica meio vermelho. Vira-se pro recém-chegado Juca: “Aqui, ele tá me mandando colocá esse quadro no lugar do que tá na parede. Posso fazer isso”? Juca hesita. “Vou ver com a recepção”. “Bréscia” começa a responder: “Aqui o…”. Fica mudo. Vira-se pra Juca de novo: “Aqui, ele tá falando que foi tudo já arranjado aqui no hotel. Diz ele que hoje mesmo vai chegar um hóspede aqui e que é pra estar tudo certinho. É só tirar o quadro que está lá e colocar esse. Não vai fazer furo novo.” Juca coça a cabeça: “Vou ligar pra recepção”, repete. Sai para telefonar usando o telefone da sala. Enquanto isso, o rapaz da elétrica fala no telefone. “Vou ligar”, e liga o Blu-Ray. “Mas não tem disco”. Fala no telefone de novo, apertando o botão de eject. “Ah tá”, diz ele. “Desliga. Tá. Liga de novo. Tá. Aperta o play”, repete enquanto faz simultaneamente. De repente começa a tocar um vídeo com umas modelos. Coisa de maquiagem. Parece ser um vídeo de instruções. Muito bonito. Apareceu um menu para selecionar várias línguas. “Cadê o Português?”, pensou. “Tá, vou desligar”, disse e apertou novamente o ON/OFF. Juca volta: “Aqui, tá ok, mas falaram que é pra ter muito cuidado. Falaram pra eu mesmo fazer”. Tira o quadro do lago azul pintado que fica na parede na cabeceira da cama. Tenta colocar o quadro dentro do armário, mas o espaço é pequeno. O sujeito da elétrica diz: 83 “Aqui, o cara falou que você deve colocar ele atrás do sofá da sala. Ah e que é pra colocar aquela mala grande, com aquele monte de coisa de mulher, em cima da mesa da sala. E os quadros pequenos na sala também”. Juca põe o quadro atrás do sofá. Levanta a mala, que devia pesar uma tonelada. Presa a ela está um manual grande, com fotos. Em papel cartolina. Deve estar em inglês. Deixa a mala em cima da mesa conforme instruído, pega o quadro de vidro, não sem se surpreender: “é levinho, pensei que fosse pesadão”, e o coloca em cima da cabeceira da cama utilizando o mesmo prego anterior. O quadro tem aquele arame de prender muito longo, não ficando rente à parede. Na verdade, forma um ângulo. Suficiente para que alguém, deitado, olhando para cima pudesse ver pelo menos parte do seu próprio corpo refletido. “Será que não cai não?” pergunta Juca, tanto pra si mesmo quanto para o rapaz. Ficam na dúvida. Juca diz: “Vou tirar”. O rapaz fala: “Não precisa, o cara te ouviu falar e tá dizendo que o quadro é levinho. Se cair, a culpa é dele. Pra você não se preocupar.” . Juca e o “Bréscia” só saem do quarto pelo menos meia hora depois. Por duas vezes, chegam a comentar, bem ao longe do telefone, “caralho, esse cara parece que tá vendo a gente”. Somente depois que tudo está exatamente igual o sujeito tinha escrito no papel é que ele aceitou desligar o telefone. No quarto, a TV antiga ficou no canto, no chão. “Aqui, essa nova TV não vai pegar os canais, não” diz o rapaz da elétrica para Juca. “Essa grande é só para o pessoal fazer o curso deles, entendeu?”. E acrescenta: “E também pra jogar videogame”. No Xbox, pressiona o “eject”, mas não sai nada. “Uai, não tem disco. Como que o pessoal vai jogar sem disco?”. Juca dá de ombros e diz: 84 “Já acabou? Então vamu simbora que hoje é domingo, tô querendo sair mais cedo”. “Bréscia” retruca: “eu também tô nessa”. “Ah, aqui as chaves dos cadeados. Ele mandou você colocar isso na caixa de correspondência do quarto que é pra saber onde está quando forem tirar o equipamento”. Juca estende a mão, pega a chave e diz: “Vamos logo que o jogo do Galo já vai começar”. * * * De volta, Marcos hesita entre uma soneca, uma transa ou trabalhar. “Maldito publicitário que inventou a campanha do Gelol, ele fodeu meio mundo com aquela história de ´Não basta ser pai, tem que participar’. Nunca me lembro do meu pai brincando comigo. Hoje, se o cara não estiver lá, dando aquele apoio, é considerado um pai ausente”. Pensa isso porque passara a maior parte do tempo no clube brincando com as meninas na piscina. Não que achasse ruim, mas queria poder ter dado uma relaxada mais completa, talvez pegado uma sauna. Precisa relaxar. Ultimamente anda preocupado com a empresa que mantém com o sócio Luiz, Luiz Antônio Prado, o Pradinho. Decide que tem de trabalhar. Faz um café instantâneo. Moravam em um apartamento de três quartos, mais um reversível. Como a empregada nunca dormia em serviço – “graças a Deus que não, porque Vanessa deve fazer a seleção com base no ‘quanto mais feia melhor’. Se desse de cara com uma delas à noite na casa eu poderia ter um ataque do coração de susto” – o reversível passou a ser o 85 escritório e biblioteca da casa. Aproveita que todos tiravam um cochilo antes do jantar e foi direto no Facebook. Algumas mensagens de familiares, uns updates. Uma antiga conquista, Nívea, mandava-lhe uma mensagem: “Oi, sumido”. Morava em São Paulo. Nenhum contato da Sandra. “Ela deve estar puta, mulher detesta homem que come e some”, pensa. “Por isso nem ‘oi’ ela mandou”. Começa a escrever uma mensagem para ela: “Oi. Estive pensando em você. Infelizmente o fim de semana foi agitado e não deu para fazer contato”. Acha fraco. Seco. Tem de melhorar isso. Adiciona: “Mas estou com saudades. Grande beijo”. “Melhorou”, pensa. Por precaução, fecha o Facebook. Abre o Hotmail. Tinha um endereço críptico: m3544@hotmail.com. Isso porque, na época, havia aberto um MarcosAvilarReis@ passagen.se em um provedor sueco. Como a tecnologia de filtros de spam era inexistente, solucionou o problema deixando o Passagen.se apenas para a família e estudo. E passou a usar o m3544 para todas as outras coisas. Revistas. Sites de assuntos de tecnologia. Sorteios. Brindes. Com o passar do tempo, entendeu que ter um email críptico tinha suas vantagens. Para se registrar em sites pornôs, fazer contatos via ICQ, trocar mensagens sem, necessariamente, revelar sua identidade. Porém, o site Passagen acabou, ficando só com o Hotmail. Quanto à permanecer incógnito, o Facebook agora estava lá pra mostrar para todo o mundo que ele era o rosto por trás do m3544. No início não entrou para o clube do Facebook, algo muito estranho sendo ele uma pessoa tão ligada em tecnologia. Ele achou o site perigoso. A começar que perdia o anonimato. Mas com a pressão dos amigos, familiares, colegas de emprego, acabou cedendo. 86 Bem, pelo menos a Sandra lhe apareceu através do Facebook. E não foi a primeira. O Facebook provou que ele estava errado. “Facebook é o bicho”, pensa. “Obviamente eu deveria ter aderido antes. Já teria comido umas duas ou três a mais”. Há somente um e-mail novo. Está escrito em inglês: “Hora de checar seu balanço no HigherOne”. “Devo ser o único brasileiro pobre que tem conta bancária nos Estados Unidos e na Suécia”. Imediatamente, corrige seu pensamento. “Falar que sou pobre é uma afronta aos verdadeiros pobres. Devo ser o único brasileiro não-milionário que tem conta bancária nos Estados Unidos e na Suécia”. Quando estudava computação na Universidade de Houston, Marcos trabalhava como monitor de laboratório. Para receber seu salário, a universidade requereu que ele abrisse uma conta bancária. Abriu. A manutenção da conta era relativamente custosa para quem ganhava salário mínimo. No ano da sua formatura, porém, a universidade instituiu um novo sistema. A identidade de estudante passou a ser um cartão magnético, igual a um cartão de crédito. Inclusive, com a foto do estudante no cartão. Esse cartão era conectado a uma conta bancária e funcionava como cartão de débito em qualquer estabelecimento comercial que aceitasse a bandeira Mastercard. A manutenção da conta, desde que a pessoa fizesse todas as movimentações por cartão, era gratuita. Talão de cheques e outras coisas eram à parte. Isso simplificou muito a vida de estudantes que ganhavam mesada, por exemplo. O sujeito fazia tudo, dentro e fora da universidade, utilizando o cartão magnético e podia fazer retiradas em qualquer caixa automático no mundo. Mesmo depois de formado, como ex-aluno, 87 ele tinha o direito de manter o cartão. O único compromisso era movimentar a conta a cada 90 dias. De tempos em tempos, ia até um McDonald’s e comprava um sanduíche com o cartão a fim de evitar a multa de 30 dólares. “Quem sabe um dia ainda não fico rico e vou ter de desviar muito dinheiro para essa conta”, suspira. Normalmente, para abrir uma conta no exterior é necessário muito dinheiro, abrir uma empresa no país em questão, ter um imóvel como garantia lá. Não tinha nada disso. “Será que não existe um uso mais inteligente para essa conta?”. Sabia que deveria haver algo, mas não conseguia imaginar o que esse algo seria. Deixa esses pensamentos de lado. Entra na conta, via internet. Saldo: US$ 3 mil. Vê que, no mais tardar em junho terá de movimentá-la. Coloca um lembrete no seu calendário do computador. Sincroniza o computador com o telefone celular, um SonyEricsson Xperia Arc. No dia 27 de maio, às 10h30, seu telefone iria soar um alarme e a mensagem “Atenção. Movimente a conta da UH” apareceria no visor. Tira da gaveta um dispositivo preto, parecendo uma minicalculadora. É um identificador eletrônico para a sua conta na Suécia. Os bancos suecos têm uma tecnologia muito desenvolvida em relação à internet. Marcos entra na página do banco, digita seu número pessoal (ano de nascimento, data de nascimento, dia de nascimento, mais quatro dígitos pessoais – 690606-5350 ). Na tela, aparecem dois números: 4534 e 4576. Digita sua senha individual 8693 no aparelhinho, seguido do número 2, e digita primeiro 4534. O aparelho pisca. Digita o segundo número 4576. O aparelho pisca e meio segundo depois lhe dá uma contrasenha: 567 345. Marcos digita essa senha 88 no computador e no próximo segundo sua conta bancária na Suécia aparece. Tem 45 mil coroas suecas, o equivalente R$ 10 mil. A conta foi aberta durante a época que fez mestrado na Suécia, em 1997. Talvez, o melhor ano da sua vida. Essa conta era mais cara, custava cerca de R$ 15 por mês. “Nada mau para se ter uma conta na Suécia.”. Essa conta tinha mais utilidade que a conta nos Estados Unidos, porque era através dela que financiava a empresa que mantinha na Suécia junto com o Pradinho. E seria através dela que receberia os lucros que em breve iriam obter. Marcos conheceu Pradinho em uma festa na embaixada brasileira no início de 97. Tinha recém-separado de Eva e já havia se mudado para o apartamento estudantil. A essa altura, tinha pouco mais de seis meses de Suécia e já estava farto da turma brasileira que é um retrato do país em miniatura: tinha a turma do samba, a turma do forró, a turma do futebol, a turma da pinga, a turma que queria levar vantagem. Todos se abraçavam, cantavam um sambinha, exaltavam as belezas do Brasil varonil e reclamavam da Suécia. Reclamavam do frio, do povo, das ruas. Uma mulher afirmava que a Suécia era um país muito subdesenvolvido. A outra, dizia que estava cansada de perfume francês, que tinha saudade mesmo era do leite de rosas. E uma outra concordava e acrescentava: “E da pomada Minancora para passar debaixo do sovaco.”. Não raro, de repente alguém começava a falar do dia em que foi assaltado no Rio ou em São Paulo: “O cara foi e botou o berro no meu cangote. Pensei comigo. Agora to fodido. Um outro retrucava: “que isso meu, isso não foi nada. E eu que dei de cara com dois caras, totalmente drogados, e eles falaram 89 um pro outro ‘vamos passar esse cara’”. E por aí continuava, cada um contando a história mais escabrosa que a outra, para no final todos chegarem à conclusão que “país bom é o Brasil. É o melhor país do mundo. Que a Suécia era uma merda”. Mas ninguém arredava o pé. A maioria estava contando o tempo para receber o visto permanente. Que sai com, no mínimo, um ano de residência desde que se esteja casado ou oficialmente juntado com um parceiro sueco. No caso de Marcos, o MBA dele terminaria no final de 97. Teria morado lá um ano e meio. Não sabia o que faria depois. Talvez fizesse um estágio. Talvez continuasse na Suécia. Foi nesse estado, com muitas mulheres dando mole e nenhum amigo homem, que Marcos encontrou o Pradinho. Pradinho era cantor. Tocava violão e guitarra. Tinha sido contratado para a festa da embaixada. Obviamente, já era conhecido na comunidade brasileira. Era negro claro, se é que essa definição existe. Na Suécia, Marcos encontrou pela primeira vez os verdadeiros negões. Os africanos legítimos, sem uma gota de cor branca no sangue. Do Senegal, da Nigéria, da Costa do Marfim. Pradinho já era aquele negro abrasileirado. O cabelo era crespo e curto. Era um pouco mais baixo que Marcos, devia medir 1,70m. Mas era mais forte. Tinha uma tatuagem de serpente no pulso esquerdo que se mexia à medida que ele tocava guitarra. Na embaixada, mostrou que dominava vários ritmos, desde MPB, passando por samba, axé, pagode até um forró. Cantava também em inglês, tocando os “hits” da moda. Tinha um brinco discreto na orelha direita. Nas costas, escrito em letras góticas, tinha a inscrição: “Somente Deus pode me julgar”. “Somente Deus” estava 90 centrado a uns cinco dedos de distância da nuca, formando um arco que ia do meio de um ombro ao outro. ”pode me julgar” aparecia em letras menores e escrito em linha reta, centralizado em uma altura correspondente aos mamilos. . Quando ele fez uma pausa para descanso, após ter tocado quase uma hora e meia, colocaram um CD de músicas brasileiras. As mulheres, suecas ou brasileiras, fizeram fila para dançar com ele. Ele mostrou-se mais que interessado em satisfazer a todas. A bem da verdade, Marcos praticamente não o notou, pois estava mais interessado em fazer contatos com pessoas do sexo feminino. Apenas observou, não sem uma ponta de ciúmes, que o tal músico se mostrava bem mais popular do que ele. Amaldiçoou nunca ter aprendido a tocar um instrumento. E nunca ter aprendido a dançar. Tinha dois pés esquerdos. O máximo que conseguia era dançar uma discoteca. E olhe lá. Após a festa, uma turma decidiu esticar em um barzinho próximo. Foi somente, então, que fez contato com Pradinho. O mulato era muito conversador. À primeira vista, Marcos viu em Pradinho um contador de histórias. Não foi com a cara dele. Achou-o afetado, mentiroso. Falava que tinha estado no Spy Bar – a boate mais cara de Estocolmo, frequentada até pela família real – e que havia tomado champanhe com um sujeito que teria lhe dito: “Hoje estou muito feliz”. Pradinho perguntou-lhe a razão e ele afirmou: “Porque hoje ganhei o prêmio Nobel”. Que com 16 anos já tinha deflorado umas quatro meninas, transado com uma tia quarentona e “colocado o pé no mundo”. Que, dois dias antes, fora transar com uma mulher, mas quando ela tirou o tênis o cheiro de chulé foi tão forte que ele disse que ia comprar um cigarro e nunca mais 91 voltou. “Vai ver ela está nua na cama até agora”. Mas falava isso com muito humor e, por mais inverossímil que parecesse, Marcos venceu a antipatia inicial e começaram a conversar longe do grupo, para se conhecerem melhor. Descobriram que não eram, afinal, tão diferentes. Ambos eram de Belo Horizonte, ambos gostavam de computadores. Pradinho se sustentava através da música à noite e durante o dia trabalhava em uma empresa de turismo. Estudava, por conta própria, como fazer sites de internet. Havia feito o site da empresa de turismo. Mas não a conexão com o sistema Amadeus, outra firma havia feito essa parte. Encontraram-se algumas vezes. Pradinho passou a convidar Marcos para assistir aos shows que fazia em pequenos bares, geralmente no centro ou na parte velha, turística, de Estocolmo. O melhor é que Marcos bebia cerveja de graça na cota de Pradinho e pegava também as rebarbas das mulheres que sempre vinham para a mesa deles para “conhecer o artista”. Mas a amizade entre eles foi se consolidar, pra valer, no verão daquele ano. Eles foram para Kos, considerada a ilha da balada na Grécia. Se Vanessa era “a” pessoa mais sociável, Marcos descobriu que Pradinho era “o” vendedor inato. Ao chegarem ao hotel em Kos, os dois foram direto para a praia. Como é de praxe, as praias são pagas. A pessoa aluga as cadeiras e o para-sol. A praia é dividida em setores (posto 1, posto 2, como no Rio de Janeiro). Cada posto tem a sua cor. Posto 1 tem os para-sóis verdes, o 2, azuis, etc. Todos já estão, enfileiradinhos, na praia. Existem também os locais gratuitos, mas nesses você tem de levar sua própria cadeira, sua própria sombrinha. Então, 92 ao andar pela praia com cara de quem está procurando lugar, sempre tem os vendedores dos postos que lhe abordam. Vêm com aquela conversa mole perguntado de onde você é ou oferecendo um preço especial “para você, meu amigo”, com seu inglês capenga. Marcos, como sabia disso, já foi passando direto. Não deu conversa. Sabia que queria ficar mais ou menos no meio da praia, de preferência num local que tivesse um monte me meninas novas e gostosas fazendo o tradicional topless. Pradinho, esse parou. Ficou lá, conversando com o vendedor. Algo que pareceu uma eternidade, naquele sol escaldante. Marcos doido para tomar uma cerveja, sentar debaixo do para-sol. Tomar um banho de mar. Finalmente, prosseguiram caminhada. No posto seguinte, lá vem outro vendedor. Pradinho parou. Conversou de novo. Mais 10 minutos. “Saco”, Marcos pensou. “Esse cara vai me foder”. No posto seguinte, Marcos já foi logo falando: “É aqui que a gente fica”, quando viu duas louras deliciosas. Deixou suas coisas na cadeira e largou Pradinho conversando com o vendedor. Foi tomar banho de mar. Retornou, Pradinho havia sumido. Mais 15 minutos, nada do Pradinho aparecer. Depois, ouve um grito: “Vem cá, Marcos”. Era Pradinho chamando. Rumou para o bar, que ficava na beirada do calçadão. Chegando lá, Pradinho já foi logo apresentando Marcos para a turma. “Este aqui é o dono do bar, este é o filho dele, essa é a mãe, etc”. Sentaram-se. Pradinho conversava animadamente com o dono. Falava de política, de futebol. O dono do bar era também dono de uma boate, no centro do agito em Kos. Fez Pradinho jurar que iria lá, deu o cartão e tudo mais. Marcos se cansou e voltou para a esteira depois de uma hora de papo no bar. Pradinho ainda ficou 93 lá um tempão. Depois voltou e tirou um cochilo debaixo da sombra do para-sol. À noite, a mesma história se repetiu. A zona do agito em Kos é um lugar fechado para o trânsito, onde só existem bares, boates e restaurantes. Andar por ali é ser constantemente abordado por exército de pessoas, cuja função é levar clientes para dentro dos estabelecimentos. Pradinho, ao ser abordado, parava. Conversava. Dizia ser brasileiro. Gastava tempo, contava história. Foram no tal bar do sujeito da praia. Ele os recebeu com um coquetel fortíssimo, de graça. Tomaram duas cervejas, só pagaram uma. O bar tinha garçonetes lindas, de várias nacionalidades. Todas eram colegiais europeias, estavam ali ganhando um dinheirinho à noite enquanto pela manhã trabalhavam no seu bronzeado. Assim eram todos os bares. Elas moravam em repúblicas e hotéis baratos. Não ganhavam muito, mas comiam no bar. Pelo visto se divertiam muito, porque estavam no bar mesmo nos dias de folga. Nos dias de folga, elas bebiam à vontade. O dono fazia vista grossa, os companheiros de trabalho fingiam que cobravam. Porque no dia seguinte, seriam eles que estariam de folga. Uma festa só. No dia seguinte, ao voltarem à praia, o primeiro vendedor já os reconheceu. E aí, o inusitado: ele REALMENTE ofereceu para os dois um preço bem mais barato! Já na segunda noite, quando apareciam nos bares, os empregados a cargo da porta já vinham com um abraço (falso, a bem da verdade) mas também ofereciam licor, batida, uísque, tudo de graça. Esses sim, reais. Ao cabo de três dias, eram conhecidos como “os brasileiros” e, para cada cerveja que compravam levavam outra de graça mais quatro doses de uísque. Durante o resto da semana, Marcos se acostumou com Pradinho batendo 94 papo com os garçons, falando de futebol, do tempo, da economia. Invariavelmente, a conta vinha com um abatimento, ou ganhavam uma sobremesa de graça, ou uma bebida de graça. Ao final da semana, havia entendido que a mágica de Pradinho estava em não tentar vender algo para a pessoa, mas, de forma reversa, incutir na pessoa o desejo de comprar dele. Era “o” vendedor. Agora, mais de 10 anos depois, a mágica de Pradinho parece ter acabado. A empresa que eles fundaram juntos, no final de 2009, estava indo à bancarrota. Com menos de um ano e meio, o capital inicial da empresa, de R$ 30 mil (R$ 15 mil de cada) havia se esvaído. De início, a empresa se focou na ideia de Pradinho de trabalhar com transferências de dinheiro, principalmente entre a Suécia e o Brasil. Agora, o foco era um aplicativo do Facebook, ideia de Marcos, chamado CruiseKontrol. Porém o capital restante na empresa era de menos de R$ 1 mil, insuficiente para levar essa ou qualquer outra ideia adiante. Há quase dois meses os dois sócios discutiam a questão. Marcos queria uma nova injeção de capital na empresa no valor de R$ 20 mil – R$ 10 mil. Ele tinha esse dinheiro disponível. Queria levar o aplicativo CruiseKontrol adiante. Talvez desse certo, não tinham como saber porque não tinham dinheiro para fazer um marketing adequado. O máximo que fizeram foi umas propagandas no próprio Facebook que custou R$ 500. Já tinham mais de 900 usuários, porém Marcos acreditava que precisavam de sete a dez mil usuários para iniciarem a parte seguinte do projeto, quando, então, poderiam através de publicidade paga ganhar dinheiro. Por enquanto, era tudo custo e nenhuma 95 receita. Pradinho, no entanto, protelava. Dizia estar em contato com possíveis patrocinadores. Que talvez não precisassem do dinheiro. Um dia, Marcos perdeu a paciência, e discutiram feio. Ficou um clima pesado. Não se falaram por mais de um semana, quando o normal era conversarem, no mínimo, duas vezes por semana. De repente, há duas semanas Pradinho mudou da água para o vinho. Disse estar pronto para investir não apenas R$ 10 mil, mas R$ 20 mil na empresa. Justo ele, que nunca tinha dinheiro para nada. Que a empresa deles, a Protheus, deveria se dedicar a fundo ao CruiseKontrol, mergulhar de cabeça, apostar tudo. Fazer merchandising para vender na internet, camisetas, calcinhas para mulheres, miniatura de navios, tudo com o emblema CruiseKontrol. Uma boia salva-vidas branca com um coração vermelho dentro e CruiseKontrol escrito no coração. Que já tinha os contatos para a fabricação de tudo isso, e que estava perto de conseguir poder vender isso também a bordo dos navios da Viking Line e Silja Line. Também ganharíamos um percentual na venda de passagens para os cruzeiros que fossem comprados através do click no banner do site. A única coisa que faltava era essa injeção de capital. Para respaldar suas afirmações, Pradinho enviou uma série de documentos para Marcos, que naquele momento tentava entender tudo. Não conseguiu encontrar nem um contrato sequer, algo concreto. Todos os documentos eram apenas panfletos escaneados, listas de preços, material de marketing de fabricantes chineses. “Típico do Pradinho”, pensa. Já passava das 9 da noite quando, exausto, Marcos decide desligar o computador. “Por hoje chega. Amanhã tenho de tentar 96 conversar com Pradinho pelo Skype para entender isso.” Pensa em programar um alarme no seu celular, mas fica com preguiça. Vai lembrar amanhã, sem dúvida. Clica no símbolo do Windows, move o mouse para desligar, quando resolve checar o Facebook. Qual não é a sua surpresa quando não vê mais, entre os seus contatos, a Sandra. “Vixi, será que ela se emputeceu mesmo? Coisa estranha, não mandou nada. Será que aconteceu algo?” Fecha o Facebook, resolve conferir o Hotmail. Uma mensagem nova, vinda de um endereço desconhecido “xyzaaaxyz@hotmail. com” com o assunto “Urgente. Marcos Avilar Reis. Favor ler imediatamente.” “Estranho. Talvez spam. Incrível como esse pessoal tem a capacidade de achar nosso nome”. Sr. Marcos, No dia 1º de abril você esteve no Promenade Volpi. Parabéns! Clique em www.seeyou.net/01042011 para uma amostra do que preparamos para você. Atenciosamente, XYZAAAXYZ O sangue de Marcos congelou nas veias. Nunca clicaria em um link desse tipo por medo de vírus, mas a mensagem era clara. Se fosse trote, era uma coincidência em um milhão. Mais fácil ganhar sozinho na Sena acumulada. Clica. A página abre um filme, e ele é a 97 estrela. O rosto dele aparece em foco, através do espelho, comendo a Sandra de cachorrinho. Depois novamente, quando ela lhe faz o oral. Termina quando ele goza. O rosto dele fica em foco quatro segundos. O vídeo era curto, uma espécie de melhores momentos. Deve ter de dois a três minutos somente. A tela fica preta. Marcos está suado. Atônito. Assustado. Tenta recarregar a página para ver novamente o vídeo. Recebe apenas “page not found”. Clica de novo, deve ser um erro. “Page not found”. Tenta novamente “page not found”. Volta ao e-mail, clica no link. Única resposta é: “page not found”. Novo e-mail no Hotmail. Vindo de outro endereço, 15servicos15@ hotmail.com com o assunto “Orçamento. Marcos Avilar Reis. Válido somente por 24 horas”. Prezado senhor Marcos Avilar Reis, Conforme nossa visita, podemos averiguar a urgente necessidade de se fazer a reforma na sua residência da Rua Marina Inês, 15, ap. 301, a fim de se evitar o mau cheiro que será causado no iminente vazamento do esgoto por nós averiguado. O custo será de R$ 15 mil, pago através do PayPal para a conta “15servicos15@hotmail.com” até as 23 horas de amanhã. Caso o senhor resolva pelo não pagamento, entraremos em contato com a sua esposa, sra. Vanessa Rennó Reis, a fim de combinarmos horário e dia mais convenientes para a entrega do DVD com a filmagem que nos foi confiada. O DVD pode ser entregue também a algum amigo, colega de empresa, suas filhasValéria ou Verônica, etc..., sem maiores problemas. 98 Gostaríamos de adiantar que o custo não é negociável, e que essa será nossa única oferta. Finalmente, é importante que deixemos claro que a sra. Sandra não tem nenhum tipo de vínculo conosco. Ela é simplesmente uma profissional terceirizada do ramo. Através do nosso convívio, conhecemos as suas necessidades específicas e a selecionamos para a parte do orçamento.De maneira alguma ela participará ou tem conhecimento da reforma que evitará os problemas acima citados. Caso, mesmo assim, o sr. decidase de alguma forma contatá-la lembramos que isso significará quebra de contrato com todo o ônus que isso pode trazer ao senhor e a sua família. Atenciosamente, A Gerência. 99 PARTE II 100 101 Dezembro de 1987 “Novos horizontes” ustav Axel Cotto havia acabado de completar 40 anos. Esse detalhe não apenas confirmava como dava-lhe o embasamento físico e teórico que necessitava para corroborar o fato incontestável de que estava em plena crise dos 40 anos. Fazia 12 anos que havia recebido o título de Ph.D. em Engenharia Elétrica. Sua tese, “Redução de perdas em transformadores de extrema alta potência”, rendeu-lhe ofertas de empregos em várias universidades ao redor do mundo. Na época, sua namorada Francis, também estudante de Engenharia Elétrica, pediu-lhe que esperasse enquanto ela completava os estudos. Francis cursava mestrado em linhas de transmissão. Os dois eram extremamente compatíveis intelectualmente. Gostavam de estudar. Tinham aptidão para o cálculo. Eram também fisicamente compatíveis. Ambos eram relativamente pouco atraentes, chamavam pouco a atenção. Vestiam-se com roupas discretas, compradas em lojas populares. Gostavam do anonimato. Eram suíços de origem alemã. Conversavam entre si em alemão. Ambos compreendiam perfeitamente inglês, francês e, em menor escala, italiano. Frequentemente, eram confundidos com irmãos. Ambos estavam um pouco acima do peso, tinham a pele clara, olhos claros, rosto redondo. Ele mantinha o cabelo bem curto, ela um pouco mais longo, na altura dos ombros. A confusão devia-se não somente ao fato da semelhança física e da personalidade em si; mais importante 102 talvez fosse o fato de que eles raramente demonstravam afeição publicamente. Apesar de relativamente jovens, nunca eram vistos beijando-se efusivamente. No quarto, na intimidade entre quatro paredes, pouca coisa mudava. Apesar de morarem juntos há apenas um ano, o sexo, que no calor inicial da paixão resumia-se a uma transa rápida duas ou, no máximo, três vezes por semana, agora resumia- se a uma vez por semana. Em uma semana boa. Na verdade, se fizessem a conta veriam que estava mais para duas vezes ao mês. O único ponto de discordância entre os dois era a paixão de Axel por futebol, que Francis detestava. Fazia, então, 12 anos que Axel havia trocado as possibilidades de uma vida acadêmica em algum país distante por um estável emprego na empresa Suíça BBC Brown Boveri. Surpreendentemente, assim que terminou seus estudos, aproximadamente três anos depois de tê-lo convencido a permanecer em Geneva, Francis o deixou por um imigrante etíope que havia conhecido dois meses antes. Ela pediu muitas desculpas, mas não ofereceu muitas explicações. Disse-lhe, laconicamente: “É mais forte do que eu”; “não posso resistir”; “não consigo mais morar com você”; “seria uma farsa”. Por fim: “descobri uma nova Francis que eu mesma não conhecia.” Deu-lhe um beijo no rosto e nunca mais se viram. Naquele ano, ele inteirou os 40. Não havia feito aquela expedição pelo Nepal. Não havia atravessado de costa a costa o continente norte-americano em uma Harley-Davidson. Não havia participado de uma caravana no deserto do Saara. O que havia feito era estudado e trabalhado. Mesmo assim, provavelmente não seria um dos laureados com o Prêmio Nobel. Após Francis, tinha tido outras 103 namoradas, nenhuma muito séria. Todas parecidas com ele mesmo. Não tinha filhos. Pelo visto, não os teria. Pensou em um Axelzinho. Seus pais já haviam perdido a esperança de serem avós. Talvez se isso acontecesse, eles estivessem muito velhos para poderem curtir o netinho. Os pais haviam tido ele ainda jovens. Ele tinha 18, ela 16. Axel nunca pensou em seguir os passos dos pais. Tinha os estudos, a carreira. Agora, era o único do departamento que não tinha filhos. No lado positivo, tinha um cargo bom, era o chefe. Começou a sentir o peso da idade. Deprimiu-se. Quando, no ano anterior, a empresa dele uniu-se à sueca Asea formando a ABB – Asea Brown Boveri – maior empresa de engenharia elétrica do mundo, Axel deu de ombros. Foi somente no dia do seu aniversário, quando um dos diretores chamou-lhe a sua sala para fazer-lhe uma proposta, que Axel entendeu que havia tido uma segunda chance. Sua segunda chance de escalar o Nepal. Mais precisamente chefiar o departamento de alta voltagem recém-criado na cidade de Betim, no Brasil. País do qual não sabia basicamente nada, exceto o que ouvia nos comentários que antecediam as partidas durante as copas do mundo de futebol. “Já é o suficiente”, pensou. Nas viagens que fazia a trabalho, pelo mundo inteiro, nunca havia tido problemas de comunicação. Quer dizer, nada muito sério. Sempre se virava com inglês, alemão ou francês. “Vai ser tranquilo”. Em 5 de dezembro de 1987, Axel já estava instalado no Brasil. Morava em um hotel, próximo ao local de trabalho em Betim. Betim, sede da fábrica da Fiat no Brasil, e de uma das maiores refinarias da Petrobras, é uma das cidades-satélite de Belo Horizonte. Não se 104 trata exatamente de uma cidade de cartão-postal. As opções noturnas eram extremamente limitadas, ainda mais se comparando com Geneva ou outra grande cidade que conhecia. Axel preferiu por não optar pelo carro a que tinha direito, limitando-se a fazer o percurso hotel-trabalho a pé. Não gostava muito da comida, que achava indigesta. Em uma ocasião o levaram a um restaurante para comer algo que se chamava feijoada. Nunca havia visto algo tão repugnante na vida. Passou o primeiro mês praticamente no hotel. A dieta forçada e as caminhadas fizeram-no perder peso. Fez buracos extras nos dois cintos, com a ajuda dos funcionários do hotel. O trabalho o absorvia por completo e nos finais de semana caminhava ao redor do hotel. Tinha medo de sair à noite porque entendia a real possibilidade de ser assaltado. Na melhor das hipóteses, levariam apenas seu dinheiro. Via no jornal fotos de pessoas mortas à bala. As casas tinham muros altos, de 2,5 metros de altura. Os prédios tinham seguranças. Descobriu que o Brasil era um país muito violento. Sua única extravagância era ir ao Mineirão, assistir aos jogos do Atlético ou do Cruzeiro. Não havia se decidido por qual time torcer. Um dia viu um jogador do qual nunca tinha ouvido falar. Um tal de “Dario Peito de Aço”. Entendeu que ele havia sido um grande jogador do Atlético. Era um documentário ou um programa esportivo. Os conhecimentos de português eram extremamente limitados, porém tinha a facilidade da bagagem do italiano e do francês. Isso, obviamente, não ajudava em nada quando tentava se comunicar com os nativos. Porém, nesse dia, assistindo televisão, ouviu a coisa mais engraçada da sua vida. Era o tal do Dario, dizendo: “Me diz o nome de três coisas 105 que param no ar: beija-flor, helicóptero e Dadá Maravilha”. Naquele dia, repetiu para si mesmo essa frase, em voz alta umas 50 vezes. A vida de Axel transformou-se no início de janeiro. Apesar de ser um sujeito pacato, mesmo para ele aquela vida começava a ficar monótona. Um dia, um colega de trabalho sugeriu se encontrarem em uma chopperia chamada Fim de Tarde. Disse que ela ficava na Avenida do Contorno, próximo ao tobogã, e que qualquer motorista de táxi saberia. Que iria levar uma amiga da mulher dele. Como ele era solteiro, quem sabe não seria interessante? Axel relutou. “A corrida de táxi vai ficar muito cara”. Como expatriado, Axel recebia uma fortuna para os padrões brasileiros. Parte do salário era depositada diretamente na sua conta na Suíça. Como havia optado por não ter carro, tinha direito a reembolso de táxi. Hotel, lavanderia, todas as despesas eram arcadas pela empresa. No domingo, 16 horas, lá estava ele na porta do bar. Trajava uma calça bege e um sapato marrom. As meias pretas destoavam. Uma camisa verde meio desbotada fazia com que o conjunto não ficasse harmônico. A calça era muito social e a camisa muito descontraída. A parte que sobrava do cinto apertado até o último botão teimava em se desprender da alça da calça, demonstrando ser deselegantemente grande. O caimento da calça, no mínimo dois números acima do que seria o ideal, deixava muito a desejar. O restaurante ocupava uma grande varanda, conferindo um aspecto de deck ao bar. Apenas em vez de mar ou lagoa, contemplava-se a avenida. Típico de Belo Horizonte. Era um dia quente, um bom domingo de sol. Os garçons eram ágeis, prontos para substituir o copo assim que ele estivesse com menos 106 de um terço do conteúdo. Axel nunca havia estado em um lugar assim. Nunca havia bebido uma cerveja tão leve. O tal chope. Era muito bom. “Finalmente encontrei algo que não conhecia e que é realmente bom”, pensou. O colega chegou logo depois, com a esposa. A esposa, com a amiga. A amiga não falava inglês. Não era atraente. Axel podia ser tímido, contido, mas sabia o que era uma mulher atraente. Como aquelas da mesa ao lado. Ou da outra mesa, mais à frente. Ou da mesa de fora, perto da sacada, já dentro do restaurante. De fato, Axel começou a notar que nunca tinha visto tantas mulheres atraentes juntas. O colega falava bem inglês, era divertido. As mulheres não falavam nada e, como, obviamente, Axel não havia nem se esforçado em tentar conversar com a amiga, deram-se por vencidas. Após uma hora arrumaram uma desculpa qualquer e foram embora. O colega voltaria depois, de táxi, para casa. Ele havia visto Axel tentar se comunicar melhor no escritório. Entendeu que Axel não havia feito o mínimo esforço além do tradicional cinco minutos de conversa inicial, do tipo “qual o seu nome, com o que você trabalha?”. A amiga era mesmo uma encalhada. A esposa sempre tentava encaixá-la com alguém, mas verdade seja dita, ela era feia e sem sal. “Se a pessoa é feia, ela tem de dar um jeito. Se produzir. Ou ter um papo legal. Ou ser engraçada. Igual cego. O cara fica cego, então aguça algum outro sentido para compensar”, pensava o colega. O nome dele era Pacheco. Pachecão. Não era nenhum primor de beleza, mas seguia seu próprio ditado e compensava sendo bom de papo. Assim que as mulheres foram embora, Pachecão virou-se para Axel e disse, em inglês. “Aquela mina está te dando a maior bola”. 107 Axel não entendeu. O inglês de Pachecão era um dos melhores da firma, mesmo assim, às vezes, rateava. Pediu para ele explicar melhor. Pachecão insistiu: “Tá vendo aquela ali? Ela gostou de você.”. Axel continuou sem entender. Pachecão mostrava uma garota de uns 30 anos, no máximo. Ela usava um bustiê, uma minissaia e botas. Exalava sexo. A boca, vermelha. Era bem morena. Tinha os seios pequenos, a bunda média. Os olhos pretos. Os cabelos eram longos, anelados. Axel viu ali uma deusa tropical. Dessas de comercial de TV, na Suíça, quando necessitavam de um estereótipo de sexualidade. Um xampu tropical, algo assim. A mulher saindo da lagoa, cabelos molhados. A foto do xampu. Quem quisesse ser igual ela, bastava usar o tal xampu. Somente nessas horas, pela TV, tinha avistado uma deusa dessas. O Pachecão estava fazendo hora com a cara dele. Deve ter compreendido errado. Estava confuso. Todas as namoradas que havia tido na vida eram... o contrário daquilo ali. O oposto. O que quer que aquilo ali, na mesa perto, fosse. “Vai ver os chopes me subiram à cabeça e eu estou é bêbado, vendo mulher de comercial de xampu da TV suíça”. Pachecão cansou de explicar, virou para Axel e disse: “Espere aqui”. Levantou-se foi na mesa vizinha. Deu beijinhos nas duas meninas, o que para Axel era algo inexplicável. Nunca havia visto alguém beijar desconhecidos. Ali eles beijavam no rosto como forma de se apresentar. “Muito estranho, não sei se consigo fazer isso”, pensou. As meninas olharam para ele. Pachecão continuava lá. Gesticulava. Chamou o garçom. Envergonhado, Axel notou quando as duas garotas levantaram da mesa. “Decerto se ofenderam e estão indo embora. Onde vou colocar a minha cara?”. Porém, em vez de 108 descerem a escada da rua que ficava no centro do bar, elas continuaram. Pararam na frente da mesa de Axel. Pachecão chegou, todo afobado, puxando as cadeiras. Axel enrubesceu. Ficou vermelhinho igual a um pimentão. Estendeu a mão para cumprimentá-las. Foi recusado. As duas, em vez de aperto de mão, lhe deram três beijinhos no rosto. Elas riram da timidez dele. Acharam divertido o fato de ele estar sem jeito. Ele enrubesceu ainda mais. A “deusa” então colocou a mão na perna dele e disse “no problem”, enquanto olhava nos olhos dele. Axel se perdeu naquele olhar. Sentiu-se leve. Sentiu-se quente. Não era o calor da paixão. Era o calor do desejo. Imaginou-se beijando aquele corpo moreno. Tinha dificuldades de se expressar. As palavras não lhe saíam. Mas não precisava. Pachecão se incumbia de azeitar a conversa. Ele só olhava, sorria. Não acreditava, mas aquela mulher parecia estar realmente se insinuando para ele. “Será possível?”, se perguntava. Já passava das 22 horas quando Pachecão disse que precisava ir embora. A amiga da “deusa”, aparentemente, morava perto da casa do Pachecão, então iriam dividir um táxi. Pelo menos foi o que Axel entendeu. A deusa ficou. Assim que eles saíram, a deusa, cansada de esperar ele tomar a iniciativa depois de se insinuar para aquele homem por mais de duas horas, beijou-o. Ela tinha a língua grande e grossa, e beijava intensamente. Não era o beijo tímido que ele esperava. Ela colocou a mão dele na sua perna nua. Ela já tinha mais de 30 anos. Era experiente. Mas nunca havia beijado um gringo. Desde a tardinha estava excitada com a ideia de experimentar aquele gringo. O gringo vestia-se mal, umas roupas esquisitas, mas 109 tinha seu charme. Um charme inocente. Divertiu-se com a ideia de deflorar o gringo. “Vai ver, ele é virgem”. Já tinha dado para muitos, por muito menos. Uns escrotos babacas. Desde quando ela tinha 20 anos, os caras na idade do gringo caíam matando. Os acima dos 35 eram os mais indecentes. A maioria casados. Mentirosos. Naquela idade, inocente, inexperiente, ela caía na conversa, se apaixonava. O gringo parecia menino, todo feliz, rindo pra ela. Mostrou, pela respiração, que estava excitada. “Tenho de improvisar”, pensou. Colocou a mão dele um pouco mais para cima da coxa dela. O gringo mostrava-se desnorteado e a coisa não evoluía. Ela pediu ao garçom um pedaço de papel. Ele lhe deu três folhinhas que arrancou do bloquinho que usava para anotar os pedidos, e a caneta. Ela esperou o garçom ir embora. Escreveu hotel e, abaixo da palavra, um coração. Entregou para Axel com um sorriso. Depois, à vista dele, fez um xis em cima do H e colocou em baixo um M. Axel já havia estado nos Estados Unidos e sabia que motel era um hotel usado por viajantes para descansar na estrada. Que era pago por hora. Ele retribuiu o sorriso com um beijo e chamou o garçom fazendo um gesto. Quando o garçom chegou, ele fez o sinal de que estava escrevendo algo. Sabia que isso significava pedir a conta. A “deusa”, a essa altura, mordiscava-lhe o lóbulo da orelha, e passava a mão em seu peito. Depois ela escorregou a mão, e em um descuido, tocoulhe o pênis. Ela riu. Ele estava duro por debaixo da mesa. Ela gostou. Aquela noite, ela ia mostrar pro gringo o que é que a mineira tem. * * * 110 Ao chegar em Houston nos últimos dias de 87, Marcos foi recebido no aeroporto George H. W. Bush – o pai, não o filho – pelo seu “padrinho” no Rotary Internacional, sucursal Houston. O clube estava patrocinando para ele uma bolsa de estudos integral. O tal padrinho havia concordado de hospedá-lo na sua casa enquanto o semestre letivo não começava. Logo após os iniciais cumprimentos, antes mesmo de chegarem ao carro, o padrinho contou-lhe que um amigo dele era “state representative” – algo equivalente a deputado estadual– e procurava alguém disposto a morar na casa dele. Como a capital do Texas é Austin, o sujeito passava a maior parte do tempo lá e a casa dele em Houston ficava sempre vazia. Recentemente, havia sido arrombada. Por conta do sistema de alarme, os ladrões não levaram nada, mas isso era uma questão de tempo. Ficava longe da universidade, mas que talvez pudesse ser interessante. Obviamente, a ideia de economizar com despesas de moradia, já que a bolsa custeava apenas as despesas universitárias mais uma mesada de meros 500 dólares, era tentadora. Poderia usar os 3 mil dólares que levado para comprar um carro. Um ex-colega do Colégio Santo Antônio, ao saber que iria a Houston, disse-lhe: “somente mendigos não têm carro em Houston. Mulher nenhuma nem olha para a cara de alguém que não tenha carro. É mais fácil um cara sem pinto pegar uma mulher do que um sujeito sem carro.” Isso para ele foi uma surpresa. Esperava que Houston fosse uma cidade moderna, com metrô, ônibus. Procurou se informar e encontrou, em um guia turístico, a informação de que Houston era “provavelmente a maior cidade dos Estados Unidos com o transporte público mais deficiente”. 111 “Talvez fosse exagero deles. Coisa de gente que não pega ônibus, acostumado com o bem-bom. Não podia ser pior do que Belo Horizonte”, raciocinou. Descobriu que não era exagero dois dias depois, no sábado. Havia marcado de ir até a casa do tal político às 18 horas. Estudou bem o trajeto. Tinha de pegar três ônibus. Saiu bem cedo, às 16 horas. Descobriu que havia olhado o dia errado. Era final de semana e os ônibus passavam de meia em meia hora. Estava um frio congelante. “Houston deve ser uma das cidades mais frias do mundo”, pensou. O guia que leu afirmava que era um lugar quente. “Viadinhos. Vou me foder nesse frio.” Não tinha levado roupas para um frio descomunal como aquele. Descobriu também que as distâncias eram quilométricas. O ponto de ônibus, que ficava pertinho, na verdade requisitou uma caminhada de 15 minutos com passo firme. Eram 18 horas e ele ainda estava no centro. Ligou para o tal sujeito, que demonstrou uma certa arrogância quando ele falou: “estou indo de ônibus”. Acabou chegando lá às 20h30. Isso porque o cara foi buscá-lo no ponto. A parada mais perto ficava uns 10 minutos da casa, indo de carro. O cara tinha um desses carros enormes. Um Buick azul, quatro portas. Nunca havia entrado num carro tão grande. Todo em couro bege, mas no painel do motorista e nas beiradas das portas, madeira escura. A mudança de marchas era automática. A alavanca para mudar de P para D ficava junto ao volante. Marcos lembrou-se de já ter visto isso antes. Um carro antigo brasileiro. Mas o motorista tinha de passar marcha. Talvez fosse um jeep antigo que o avô tinha. Dentro do carro fazia uma temperatura de perfeitos 25 graus. O cara apresentou-se como Bob Sparks. Falou, 112 com um inglês arrastado, bem típico do Texas. “Você demorou, então espero que não se importe de nós irmos a um restaurante comer alguma coisa”. Marcos não se importava. Estava faminto. “Mas, antes, vamos ali na casa da minha namorada. Ela vai conosco”. O tal de Bob tinha uma latinha de cerveja na mão. No chão do carro, do lado do passageiro onde Marcos estava sentado, estavam cinco latinhas de cervejas, unidas por um anel quase transparente encaixado no topo delas. Bob perguntou: “Você gosta de cerveja?”, mostrando a sua lata e apontando para as outras próximas aos pés de Marcos. “Se quiser pode se servir, porém seja discreto. Aqui no Texas existe a lei do “contêiner aberto”. E continuou, notando que Marcos não tinha a menor ideia do que isso significava na prática. “O sujeito pode transportar bebidas alcoólicas na cabine do passageiro, mas elas devem estar lacradas. Abertas, só no porta-malas”. Marcos puxou uma latinha. Sentiu que essa era bem mais leve e flexível do que as que conhecia. Demorou cinco segundos para entender que, ao contrário das latinhas do Brasil, essa você empurrava o selo de metal para dentro da latinha. Achou meio anti-higiênico. “Prefiro essas que a gente puxa o lacre. E se a tampinha estiver suja?”. Tinha ouvido dizer que latas e garrafas poderiam estar sujas de xixi de rato. “Agora já era” e tomou um gole, fazendo o máximo para ser discreto, mantendo a lata abaixo da linha de visão de quem estivesse de fora do carro. O Buick Electra trafegou uns cinco minutos pela avenida Uvalde, depois entrou para um setor residencial, chamado Woodforest. Bob ficou zanzando, virou numa esquina, virou na outra, seguiu. A casa da namorada, obviamente, ficava longe. Finalmente, 113 embicou o carrão em uma porta de garagem, subindo um pouco a rampa de concreto. O percurso todo levou uns dez, doze minutos. Era uma casa grande, baixa. Ele buzinou. Esperou um minuto. Buzinou de novo. Uma loura, de cabelos curtos e óculos saiu de dentro da casa. Ambos tinham por volta dos 50 anos. Um pouco menos ou um pouco mais. Poderiam ser seus pais. Marcos se deu conta da sua falta de educação e abriu a porta, fazendo menção de passar para o banco de trás. Ainda do lado de fora, a loura fez sinal para ele se sentar. Ela acomodou-se no banco de trás e disse para Marcos: “Prefiro sentar aqui. O banco atrás do motorista é o local mais seguro do carro. Eu não confio muito nas habilidades de Bob quando ele está no volante”. Ela riu, estendeu a mão e disse: “Ruth Brooks”. Marcos a cumprimentou, rindo. Bob perguntou para Marcos: “O que você quer comer?”, enquanto, ao mesmo tempo, estendia uma latinha de cerveja Miller light para Ruth. Marcos falou que era melhor eles decidiram. Ela abriu a sua lata. Foram a um restaurante mexicano. O restaurante, que era próximo, ficava a meia hora de carro. Marcos descobriu que, em termos de Houston, as duas casas eram praticamente vizinhas. Mudou-se para a casa de Bob Sparks no dia seguinte. Bob e Ruth haviam gostado daquele sujeito franzino. A testa ampla conferia- lhe uma aparência inteligente. Eles ajudaram-lhe na mudança, que consistia em duas malas, uma de rodinha e a outra dessas de se carregar na mão. Modelo retirante nordestino, provavelmente nem se fabricava mais. Mesmo naquela época, já estava fora de moda. Mas era a maior que a mãe tinha em casa. Era por volta das 11 horas 114 da manhã. Os dois entraram, conversaram um pouco com o “padrinho” que se chamava John. John Konstantinikoplas. Era de origem grega. Tinha um posto de gasolina. Estava, com certeza, contente de sair fora de hospedar o tal sujeito. John tinha uma filha nos seus 17 anos, cursando o último ano do ginásio. O nome dela era Maria. O tal Marcos tinha 19 anos. John sabia que 17 mais 19 era igual a sexo. Ficou, de soslaio, vendo se percebia durante o almoço do dia anterior algum tipo de “clima” entre os dois. Estava com todos seus sentidos ligados. À noite, deitados na cama, a esposa dele tinha-lhe dito para relaxar, que “não era por aí”. Ele somente respondeu:” Você se esqueceu que foi mais ou menos assim que você engravidou?” E passou a noite em claro atento a qualquer ruído na casa. Direto da casa de John, o trio Bob, Ruth e Marcos rumou para uma revenda de carros usados. Marcos estava acostumado com a oferta de carros ser limitada a Volksvagem, Ford, Chevrolet e Fiat. Cada marca tinha uns quatro, cinco modelos. No total, em 1988, contando-se modelos já saídos de linha, deveriam existir uns 30, 40 modelos de carros em oferta na maior revendedora de Belo Horizonte. Naquela hora, andando de carrinho de golfe no pátio imenso de carros, Marcos sentia-se completamente desnorteado. Nunca havia visto tanto carros juntos. Era como se a feira de carros do Mineirão, a qual havia ido uma única vez, tivesse se multiplicado por 100. Era carro a perder de vista. Marcas as quais nunca nem havia ouvido falar. Mazda. Oldsmobile. Peugeot. Toyota. Saab. “Uai, Honda não era marca de motocicleta?”. Mercedes-Benz ele conhecia pela fama, mas fora ônibus, não se recordava de ter visto nenhum ao vivo. Volvo. 115 “Esse nome não pegaria no Brasil. Polvo? Vulva?”. Bob parecia conhecer de carro, então Marcos pediu que ele o ajudasse. Estava perdidinho, igual a garoto em loja de brinquedo com 20 dólares na mão. O sujeito endoida. Com 3 mil dólares comprava um carro infinitamente melhor do que o Fiat 147 que usava emprestado da mãe. Mas Ruth e Bob achavam 3 mil dólares pouco. Fizeram-lhe uma proposta. Se ele comprasse um modelo pickup, eles colaborariam com mil dólares. Uma das primeiras coisas que Marcos havia reparado era a imensa quantidade de pickups. “Houston deve ser a cidade com maior número de pickups per capita do mundo.”, pensou. E, realmente, era. A ideia de Bob e Ruth era que, talvez um dia precisassem de uma pickup. Aparentemente eles eram donos de uns prédios e casas. Não entendia direito a relação dos dois. Apesar do medo de que ele virasse o office-boy da dupla, o upgrade de mil dólares fazia uma diferença substancial. Acabou comprando um carro, chamado El Camino, ano 1984. Era algo assim como um Opala de dois lugares, com a caçamba atrás. O banco era inteiriço. A cor era metálica puxando para cinza. A frente era grandona, com uma grade cromada e faróis retangulares. O motor era imenso. Era um “muscle car”, Bob comentou. Na parte após a roda traseira no lado do motorista estava escrito “El Camino SS”. O ruído do motor fazia o Fiat parecer um cortador de grama. Deixava os opalões que lentamente navegavam a Rua Fernandes Tourinho, ali na altura do Beb’s, ponto de encontro da época com suas batidas servidas em copos descartáveis, no chinelo. Aqueles mesmos que eram o sonho de consumo de Marcos. No trajeto para sua nova moradia, Marcos 116 dava-se conta de que mesmo os sonhos mais inatingíveis estavam tornando-se realidade. O carro era fantástico: tinha câmbio automático, regulava a altura e inclinação do volante, e ainda tinha um dispositivo chamado “cruise control”, que permitia dirigir sem nem apertar o acelerador e mantinha a velocidade constante. Marcos calibrou para 55 milhas por hora, postou-se atrás do carro de Bob que seguia em frente e, tendo cuidado para não perdê-lo de vista, ligou o rádio. Tocava uma música country. Apertou o número um do rádio. O ponteiro indicador de frequência não se mexeu. Apertou o dois. O indicador pulou para o meio do display. Outra música country tocava, essa mais lenta que a primeira. Apertou o três. Tocava “I got my mind set on you”. Era uma batida legal. Estava feliz. “Mais feliz impossível”, pensou. Imediatamente, corrigiu seu pensamento: “Vou estar ainda mais feliz no dia que inaugurar essa máquina. Só não sei se vai ser aqui no banco ou na caçamba. Talvez compre um colchão para desenrolar e colocar lá atrás.” Já havia notado que dentro da cabine, logo atrás do banco único havia um pequeno espaço. Talvez coubesse um pequeno colchão ou, no mínimo, um saco de dormir. “To do it, to do it, to do it, to do it , to do it , riiiiiiiight”, cantarolou, alto. Bem alto. Alto o suficiente para ouvirem lá no Brasil.’ 117 Janeiro de 1988 “Pegando o ritmo” horário era o mesmo, o local também e até o mesmo dia da semana, domingo. Mas podia-se jurar que era um outro Gustav Axel Cotto que estava sentado na varanda do Fim de Tarde, tomando chopp e beliscando uma porção de linguiça com mandioca frita, e que, de vez em quando, beijava uma morena sentada ao seu lado. Ele trajava uma calça jeans Vide Bula, sapatos dockside sem meia, e uma camisa branca de manga curta da Zak. O cabelo havia sido cortado em um corte assimétrico e estava estilizado com gel. A deusa, que se chamava Patrícia, também ostentava um novo corte de cabelo mais moderno, mais curto. Trajava uma blusinha leve, também da Vide Bula, em um tom azul claro e uma saia branca modelo tenista. As unhas estavam pintadas de esmalte incolor. Completava o seu visual sandálias da Arezzo e um perfume Chanel nº 5. Na porta do restaurante estava parado o Santana azul metálico, alugado da Localiza, que Axel havia usado para pegar Patrícia em casa, que ficava no alto do bairro Santo Antônio, na Praça Cairo. Tudo estava diferente. O ar estava diferente. “Nunca me senti tão vivo”, pensou Axel, enquanto a morena lhe afagava o peito por cima da camisa. Sensações. Era um mundo de novas sensações, de novos prazeres. Naquela noite, quando se conheceram, a morena lhe deu uma aula de sexo. Era uma selvagem na cama. Na cama, no chuveiro, na sauna, 118 na banheira. Em pé. Sentada. Deitada. Haviam ido de táxi para o motel. Ela conversou com o motorista e ele deixou-os na porta da suíte 12 do motel Playboy. Era a superluxo. Ela guiava Axel. Faziao tocá-la de todas as formas. Quando ele se cansou, depois do primeiro orgasmo, ela ligou o vídeo. Deixou-o assistindo ao filme pornô enquanto o chupava, vagarosamente. Trabalhava com calma. Não tinha pudores. Esperou, pacientemente, que ele ficasse duro novamente. Ela havia ligado todas as luzes. Queria que ele a visse. Fez caras e bocas para ele deleitar-se. Ela sabia que a grande maioria dos homens é visual, tira grande parte do prazer através do olhar. Era uma boa amante e, como tal, queria que a experiência dele fosse completa. Que ele a comesse com o membro, mas também com os outros sentidos... olfato, visão, tato. Mostrou-lhe a língua tocando seu pênis. Encheu a boca de saliva e tocou a cabeça do membro com a ponta da língua. Deixou a saliva escorrer enquanto mexia, vagarosamente, a língua de um lado, para outro. Olhava-o nos olhos. Por fim, sugou-o profundamente, ora rápida, ora devagar. Quando ele fez menção de tirar porque ia gozar, ela segurou o membro deixando o leite entrar em sua boca. Depois disso, ainda olhando para ele, hipnotizando-o, ela se levantou, abriu a boca e deixou escorrer o sêmen e a saliva pelo seu queixo, até pingar nos seios. Usou aquele leite como um creme de corpo, massageando-se com ele. Nem nos seus sonhos Axel havia imaginado viver um momento com esse, sentia-se renascido. Era tudo tão diferente das namoradas, que agora entendia, eram insossas. A morena puxava-o pela mão, levava-o para a ducha. Mudando 119 de ideia, ela fez sinal para ele ligar a banheira de hidromassagem, enquanto ela entrou na ducha. Antes mesmo de ele começar a encher a banheira ela já estava de volta. Tinha uma toalha em volta dos cabelos e outra no corpo, que deixou cair dando-lhe a visão do corpo perfeito. Começou a dançar para ele. Ele se sentia exausto. Já tinha tido dois orgasmos. Ela o beijava. Dava-lhe o seio para beijar. Pegou a mão dele, guiou-a para o seu sexo. Fez com que ele a penetrasse com os dedos. Com a mão em cima da mão dele, ela forçava os movimentos de vai e vem. Fez sinal para ele entrar na banheira. Ela continuou de pé e guiou a boca dele para o sexo dela. Ela segurava a cabeça dele enquanto com os quadris iniciava um movimento ritmado fazendo um leve movimento de giro nos sentidos do ponteiro do relógio. Começou a acelerar os movimentos e deu um grito, ao mesmo tempo em que Axel sentiu um fluido engolfar-lhe a boca, o rosto. Ele sorveu tudo aquilo, enquanto ouvia a respiração dela voltar ao normal. Ela se abaixou e lhe deu um grande beijo, tomando com isso um pouco do gosto para si. Axel sentia-se um pouco zonzo, ela ligou a hidromassagem, e ele deixou-se levar pelas sensações dos jatos d’água tocando-lhe o corpo. Ela sentou-se por cima dele, como que o cavalgando. Colou os seios no peito dele, descansou o corpo em cima do dele. Ficou assim um tempo e quando viu Axel dormia a sono solto mesmo com o barulhão da banheira. Deixou-o dormir. Sabia que ainda tinha muito a ensiná-lo, e que essa noite era apenas o começo. Sentiu, pela cara de satisfação dele, que se ela quisesse haveria muitas noites assim pela frente. 120 Acariciando seu peito, a morena sentia-se ainda mais à vontade com o seu “gringuinho”, como ela o chamava na sua imaginação ou nas suas conversas com suas amigas, nunca diretamente com ele. Assim que terminassem a porção, iriam para o novo hotel dele, o apart-hotel Champagnat, localizado perto dos agitos da Savassi. Dentro da bolsa, trazia consigo uns potinhos de óleos comestíveis e um pequeno vibrador que ela tanto poderia pedir para ele aplicar nela, quanto também poderia usar sozinha, “em um caso de emergência”. Trazia também uma fita de vídeo com um filme pornô “para o gringuinho se inspirar”. Sentia-se feliz. Sortuda. “Já não era sem tempo.” Nunca na sua vida tivera a sorte de ter um namorado bem de vida. Todos eram pobres ou eram casados. Ou pior, ambos. Desde aquela noite “mágica”, como ela mesma definiu com as amigas, não sem um duplo sentido, ela passava a maior parte do tempo no BH Shopping. Contou para Axel que havia perdido o emprego, quando, na verdade, pediu demissão do trabalho de recepcionista: “Horrível, salário de fome”! E resolveu investir em uma nova carreira: namorada. Ele dava dinheiro para ela ir de táxi e almoçar. Ela já deixava as roupas escolhidas nas lojas, separadas. Ele só chegava e pagava. No caso dele, primeiro vestia, para comprovar o tamanho e o caimento. Caso ela dissesse que havia ficado bom, ele comprava. Separava sempre a mesma quantidade de roupas para os dois. Em uma semana, ambos estavam com um guarda-roupa de verão completo, “tudo comprado na liquidação”, ela disse. Ele entendeu os preços remarcados de vermelho na etiqueta. Ela custou a explicar para ele que os 121 artigos de verão estavam na promoção, mas agora tinham de começar a comprar os artigos de outono que estavam chegando e esses eram mais caros. Por ser uma boa companheira, fez questão que ele comprasse um conjunto de paletó e blazer na Richard’s. Ela não comprou nada igual para si. Por outro lado, ela nem tão discretamente namorou um par de brincos na H.Stern que custavam mais ou menos próximo do valor do terno. Na sexta-feira, ele fez sinal que ia ao banheiro enquanto ela estava na Siberian Husky. De rabo de olho, ela o viu entrar na H.Stern. “Ele não é um doce?”, pensou. Tomando seu chopp, passeando a mão pelo corpo, Patrícia tinha a certeza que faria tudo que fosse possível, tudo que estivesse ao seu alcance para proporcionar-lhe um outro domingo inesquecível. Nem que para isso precisasse lançar mão de um outro potinho, indicação de uma amiga, que continha uma pomada japonesa com reputação de “fazer milagres”. * * * Foi antes mesmo do início das aulas na Universidade de Houston que Marcos conheceu Eva. Nos dias que precederam a aula inaugural, havia um sem-número de palestras e atividades com o intuito de informar aos calouros sobre a universidade. Tinha o passeio pelo campus, localizado na Rua 4.800, Calhoun Road, “próximo” ao centro da cidade (o que em termos de Houston já se entendia ser a distância que possa ser percorrida de carro em menos de 15 minutos, dirigindo- se dentro dos limites legais), ou então um coquetel na biblioteca, 122 onde as associações estudantis das mais diversas (a turma da música, da leitura, da rádio universitária, dos esportes, da ação comunitária nos bairros pobres de Houston, e por aí vai) tentavam cooptar membros. Fora a fantasia secreta de participar, como mascote, do time de “cheerleaders”, esses grupos não o interessavam. Foi na palestra dedicada aos alunos estrangeiros que ele a viu pela primeira vez. Enquanto ouvia a coordenadora explicar sobre questões de imigração, vistos, moradia, etc., Marcos observava, discretamente, os presentes. Vários grupos de asiáticos. Não imaginava que existissem tantos asiáticos em Houston. Um grupo de indianos. Na fila de registro, no dia anterior, já tinha visto alguns, com suas roupas estilo bata, gota vermelha entre os olhos, e um cheiro esquisito. Descobriu depois que era perfume indiano. Uma catinga. Achava tudo muito exótico. Em Belo Horizonte, era todo mundo igual. Tudo brasileiro. Mesma cultura. Ali, uma mistura total. Ouvia várias línguas que não reconhecia. Ao final da palestra, chatíssima porque grande parte do tempo foi dedicada à questão da moradia que ele já havia resolvido de forma brilhante, haveria um outro coquetel. Todo mundo com uma plaquinha na lapela, com o nome e o país de origem, escrito com caneta hidrocor de ponta quadrada larga. Notou que quadro-negro era branco, e que os professores usavam essas canetas hidrocor para escrever no quadro. Uma vez, tinha visto um quadro desses, quando fez um cursinho particular de informática em uma escola no centro de Belo Horizonte. Só que esse era gigante. “Quadro de Itu”, pensou. Assim que foi dada a largada para a boca-livre, foi direto na loura alta de cabelos longos lisos. Na lapela estava escrito: “Eva, Suécia”. 123 Pensou como seria “chique demais” inaugurar o “El Camino” com ela. Com uma sueca. Os amigos nunca iriam acreditar. Sueca. A Suécia era um país misterioso. Sabia onde ficava no mapa. Sabia que era muito frio. Que o pessoal lá transava, e muito. Tinha visto umas revistas ditas suecas. Mulheres lindas numa paisagem verde. “Se era tão frio, como podia ser tão verde?”. Sabia que os esquimós viviam em iglus metade do ano, mas na outra metade eles viviam em umas tendas. “Os esquimós são suecos?”. Honestamente, sabia pouco da Suécia. Mas adoraria saber bem mais. Conhecer a Suécia, de cabo a rabo. Principalmente rabo. Ou de peitos a rabo. Ela tinha uns peitões. Seria bom, um dia, entrar na Suécia. Quanto mais rápido melhor. Ela ria, conversava com ele. Também não sabia nada do Brasil. Ele pensava em mostrar-lhe o que o Brasil tinha de melhor. 17, 18 centímetros de puro calor tropical. Ela pediu licença, tinha de continuar seu giro pelo salão. Ele encontrou um outro cara brasileiro. Babacão. Tinha óculos e cara de japonês. No segundo seguinte esqueceu o nome dele. Se havia algo que não queria era “entrar numa de Brasil”. De ficar falando Português. De ficar melancólico, chorando à distância, afogando-se na saudade. “Se for assim, melhor ficar sozinho”. Sabia de gente que ia para os Estados Unidos e a primeira coisa que fazia ao chegar lá era querer comer feijoada. Ou ouvir um samba. “Tô fora. Quero me ‘americanizar’. No mínimo, voltar com o inglês perfeito, para poder dar aulas.”. O inglês dele já era excelente, resultado de seis anos de Cultura Inglesa. Faltava-lhe a fluência. Às vezes as palavras lhe fugiam. Continuou o giro. Assinou uma lista escrevendo seu nome, país e telefone. Apareceu uma irlandesa até gostosa. Duas alemãs. Muito 124 homem feio, independente da origem. Outro compatriota apareceulhe, dessa vez uma menina. Era cheia de espinhas. Caso sério mesmo. “Tem de fazer um tratamento urgente.” A sala começou a se organizar em grupinhos, por país/região. Os brasileiros, que agora já eram uns cinco, fizeram sinal para que ele se juntasse. Notou que dois argentinos estavam no grupo. “Agora que quero distância mesmo”, pensou. E a peruana do cabelo cor de acaju. Sempre ouviu falar de cor de acaju, mas não fazia ideia que cor era até encontrar a peruana. Aquilo devia ser o tal do acaju. Fez um aceno de “espera aí”. Gostava mais do grupo europeu. Ao final, apareceram cópias da lista com todos os nomes. Pegou a sua e foi ao banheiro. Tinha essa mania, de ir ao banheiro meio que como uma pausa mental. Era uma desculpa para si mesmo e para o mundo. Se estava em uma festa e ficasse de repente sozinho ia ao banheiro. A desculpa conferia-lhe um propósito. Um destino. Atravessava a festa estudando os presentes, mas não fazia sem um propósito. Se alguém lhe parasse, poderia dizer “estou indo ao banheiro”. No banheiro, analisou a situação e chegou a conclusão que o encontro “já tinha dado o que iria dar”. Resolveu ir embora para a livraria da universidade. Tinha de comprar os livros para o início das aulas. Notou, surpreso, que a própria livraria vendia livros usados. Tremendo negócio: os estudantes vendiam os livros usados a 50% do preço de capa e a livraria os revendia a 70%. Viu um ou outro tentando vender os livros na porta a 65% do preço de capa. Nenhum lhe serviria. A livraria estava completamente lotada. Praticamente todos os livros da lista existiam em versões “usadas”. Cuidadosamente, 125 vasculhava os livros procurando aqueles com o mínimo de anotações e marcas de uso. Depois descobriu que o bom mesmo era os que estavam marcados, porque já davam as dicas, os macetes, onde prestar atenção. Deve ter ficado uma hora ou mais nessa pesquisa. Comprou também duas pastas de três anéis: uma com o emblema da universidade e outra com o puma americano, o animal símbolo da instituição. Por coincidência divina, quando estava na fila do caixa já a ponto de pagar, viu Eva entrando na livraria. Saiu imediatamente da fila, ficou na frente da prateleira de revistas e seguiu-a com os olhos. Quando ela parou em um ponto, ele foi, disfarçadamente, na direção dela como quem procurava um livro específico. Ela o viu e foi logo dizendo: “Você sumiu, não ficou até o final do coquetel?”. Ele, ao ouvir isso, ficou contentíssimo. Isso queria dizer que ela o havia procurado. Ou, no mínimo, notado sua ausência. “Bom sinal”, pensou. Ela estudava em Estocolmo. Estudava Artes. A escola dela tinha convênio com a Universidade de Houston. Faria um semestre aqui, contando pontos como se houvesse estudado lá. Marcos nunca havia ouvido falar nesse tipo de programa. Sentiu inveja. Depois que conquistasse os Estados Unidos, iria conhecer a Europa. Quando saíam juntos da livraria, uma voz chamou: “Eva!”. Ela se virou. Sorriu para o negão que a chamava. Ele fez sinal para ela se aproximar; ela puxou Marcos pelo braço e disse: “Vem. Você tem de conhecer esses caras. Eles são demais”. Paul Cullin era um negão com um físico igual ao do Ben Jonhnson. Tinha quase dois metros. Cabeça raspada. Tinha bíceps enormes, que ele flexionava com prazer. Tinha um corpo invejável e plena 126 consciência disso. Usava uma camiseta sem mangas e sem barriga. Era a primeira vez que Marcos via um homem usando uma camiseta sem barriga. Marcos nunca ousaria pensar em colocar uma camiseta dessas. Era mais fácil ele colocar uma placa dizendo: “sou gay”. O sujeito usava também um calção desses de Lycra, próprio para andar de bicicleta. O calção, não havia como ignorar, mostrava todo o potencial do rapaz. Lá dentro, estava algo parecido com uma banana da terra. O colega dele, Brandon Foley, era um pouco mais alto e um pouco mais magro. Estavam rodeados de uma turma de louras, cada uma mais gostosa que a outra. Deviam ser umas seis. Todos riam muito alto. Dançavam, gesticulavam. Brandon, o mais magro, literalmente dobrava-se de rir. Aparentemente, discutiam sobre o “Homem- Melancia”. Brandon apontava para o calção de Paul. Falavam sobre a banana da terra e as duas pequenas melancias que ele tinha entre as pernas e que ficavam expostas naquele calção coladíssimo. Os dois eram jogadores de basquete e usavam o boné com a aba para trás. Eva fez as devidas apresentações, e Marcos ficou até surpreso com a simpatia dos dois. Pensou que seria ignorado, tendo em vista que eles, obviamente, gostavam da companhia feminina. Mas eles se mostraram atenciosos, perguntaram sobre o Brasil e o que eu achava dos Estados Unidos, a que chamavam de “America”. Ao final, convidaram para uma festa que aconteceria no mesmo dia, à noite. Deram o endereço. Seria em uma casa próxima, situada a apenas 15 minutos da universidade – de carro, claro. A festa estava um porre. Lembrou-se das festas dos filmes, como Porky’s. Só que não havia garotas de topless. Nem ninguém pulava 127 pelado na piscina. Todo mundo já tinha seu grupo de amigos. Sentiuse só. Eva não apareceu. Quando pensava em ir embora, apareceu o Brandon. Ele bateu no ombro dele e disse: “vamos lá conversar com o Paul.” Brandon entrou no carro, pelo lado do motorista. Era um carro marrom. O que restava do estofamento também era marrom. Devia ser 1970. O carro fedia a mofo. O acabamento do teto estava despencando. Não tinha rádio. No lugar do rádio havia um buraco com os fios aparecendo. O ar-condicionado estava obviamente quebrado, já que os “knobs” de controle haviam sido removidos. No banco de trás, Marcos identificou camisas, agasalhos, meias, uma bola de basquete um pouco vazia, um taco de beisebol, vários quepes. No chão havia latas de cerveja, Coca-Cola, suco, sacos de papel marrom vazios amassados, sacos de papel marrom com embalagens de hambúrguer cor branca. Nunca na sua vida havia visto um carro tão sujo por dentro. Brandon, antes de abrir a porta, fez um movimento de arrasta com a mão direita, jogando ao chão o que pareceu ser uma pilha de papéis de sanduíche, copos de papel tamanho gigante, panfletos de propaganda, e muitos, muitos sacos de papel marrom com um emblema da letra W estilizada e escrito embaixo “Whataburger”. Brandon, então, se esticou para puxar a alavanca que abria a porta do passageiro. Marcos notou que a maçaneta praticamente saiu na sua mão, estava obviamente quebrada. A porta só abria por dentro. Brandon ligou o carro. Colocou a alavanca na posição D e, imediatamente, um ruído agudo iniciou-se. O ruído parou assim que o carro pegou mais velocidade. Brandon parecia não saber, exatamente, aonde ir. Estavam rodando o final de um bairro. Parecia ser um bairro 128 novo, ou a extensão do bairro antigo. Estava muito escuro, as ruas não tinham iluminação e estava muito deserto. Muitas casas estavam sendo construídas ali, mas não havia nenhum morador ainda. De repente, Marcos sentiu um pouco de medo. Na verdade, nunca tinha visto esse negão até aquele dia. Ele não seria páreo para Brandon. Os pensamentos anuviaram-lhe a mente. O coração começou a disparar, sentiu a respiração ficar pesada e enormes jatos de adrenalina entrarem em sua corrente sanguínea. Pensou que ia perder a virgindade para o negão. Se saltasse ali agora e começasse a correr, não tinha a menor ideia nem para que lado iria. De repente, Brandon apagou os faróis e riu baixinho, falando: “Lá está ele”. Marcos viu um carro parado no ponto mais escuro da rua. Notou que alguém, muito grande e escuro, estava no assento do motorista. Usava um boné e tinha a cabeça caída para trás, como que repousando. Brandon mandou Marcos abaixar o vidro. O vento congelante entrou no carro. E, lentamente, emparelhou seu carro ao outro e mandou Marcos bater na janela do outro carro. O boné deu um arranco para frente e uma loura ergueu a cabeça, ajeitando-se no banco do passageiro. Marcos reconheceu que era uma daquelas que havia visto, horas antes. Brandon, rindo, perguntou: “E aí, tudo bem?”. Paul não parecia chateado, respondeu que sim, que estava tudo bem. Brandon começou a papear sobre o que fariam no dia seguinte. Ria. Paul também ria. Marcos também não podia se conter diante do insólito da situação. Sabia que, separados por duas portas de automóvel, do lado de lá estava um pênis com P maiúsculo. A única pessoa que não ria era a garota. Ficava quieta. Por fim ela se fartou: “Porra Brandon, vai arrumar algo 129 pra fazer. Daqui a pouco eu tenho de ir embora. Não enche mais o saco.”. Brandon fingiu que não ouviu. Impassível, ainda papeou com o amigo mais alguns minutos. Depois, ligou o carro e foi embora. Perguntou para Marcos: “Tá com fome? Vamos comer alguma coisa?”. No “Whataburger”, obviamente, o hambúrguer favorito de Brandon, ele contou que era amigo de infância de Paul. Brandon devia ter uns quatro ou cinco empregos. Todos, em meio período. Andava com um beep na cintura. Trabalhava numa loja de artigos esportivos, chamada Academy. Em um supermercado, o Kroger. Num posto de gasolina. Durante o verão, trabalhava muito cortando grama. Um amigo era dono de uma empresa que fazia esse tipo de serviço. Contou que Paul não tinha carro. Tinha só uma bicicleta. Que trepavam em ritmo de cavalo de reprodução, quase todos os dias. Que as louras eram loucas com eles. Que uma vez ele encontrou uma menina logo depois que ela tinha transado com Paul. “A infeliz quase não conseguia andar”. Que tinham esperanças de poderem conseguir estudar com uma bolsa esportiva. Haviam tentado todas as universidades do Texas. Estavam esperando resposta. Tinham estudado na North Shore High School, coincidentemente perto de onde Marcos morava. Lá, fizeram parte do time titular de basquete. Mas que a temporada de 87 havia sido ruim. O time nem chegou às quartas-de-final do torneio estadual. Ambos haviam se contundido. Que as louras eram fáceis, mas que ele iria se casar mesmo com uma negra. Nunca se casaria com uma loura. Que Eva, aquela sueca, havia saído com Paul. Ele tentou beijá-la, mas ela se recusou. Não deixou nem ele pegar nos peitos dela. “E eu que pensava que sueca dava fácil”, disse Brandon, 130 ecoando o pensamento simultâneo de Marcos. Paul havia dado o veredicto que não perderia mais tempo com ela. Tinha muito peixe no mar para ficar perdendo tempo com mulher difícil. Voltaram à festa. A loura do carro apareceu um tempo depois. Evitava cruzar o olhar com Marcos. Brandon conversava animadamente com uma morena clarinha. Sumiram. Marcos voltou para casa. Colocou no “cruise control” e foi embora a 55 mph. A viagem de volta levou menos de 45 minutos porque àquela hora não havia tráfego algum. Dois dias depois, encontrou Paul novamente. Estava se despedindo. Haviam sido aceitos na Universidade Stephen F. Austin, que ficava em uma cidade com um nome impronunciável: Nacogdoches. Marcos nunca mais os viu. Muitos anos depois, em uma dessas inexplicáveis coincidências, encontrou um brasileiro durante uma feira em São Paulo que havia cursado a Stephen F. Austin em 1988. Ele afirmou que conhecia os dois. Que logo no primeiro ano, Paul caiu estrebuchando durante uma partida oficial de basquete. Espumava. Recebeu o diagnóstico de epilepsia. Não poderia mais jogar. Ele perdeu peso, ficou irreconhecível. Chegou a completar a universidade, formando-se em Administração. Havia se casado antes de completar o curso com uma negra. Brandon continuou no time ainda por dois anos, mas durante as festas do recesso de primavera de 1990, quando voltava de Houston, sofreu um acidente de carro. A direção quebrou, e o carro, que era muito velho, chocou-se de frente a quase 100 km/h com uma das barreiras de proteção da pista. “Ele provavelmente teria saído ileso se o carro fosse mais novo, desses equipados com air bag”, disse. 131 Abril de 1988 “Desmaio de dar orgulho” verão virou outono e o ar fresco do início de noite de abril envigorava ainda mais Axel, que caminhava a passos largos, subindo a Avenida Cristóvão Colombo, uma das principais artérias da Savassi, onde agora morava. A Savassi é a região mais nobre de Belo Horizonte, combinando restaurantes e bares, lojas e, cada vez menos, residências. De início sempre se perdia porque todos referiam à Savassi como uma praça. Mas ele nunca encontrava a tal praça. Na frente do hotel tinha um relógio de sol, a única praça na região que conseguiu identificar. Depois descobriu que a praça em questão era apenas um cruzamento comum. Antigamente havia até um obelisco lá, mas que há anos o tal monumento havia sido movido para outro lugar no centro da cidade. Mesmo assim, todos ainda se referiam ao cruzamento como praça. “Muito confuso quando mal entendo português e ainda tenho de aprender a história da cidade”, ele pensou. Havia aprendido isso durante uma das suas aulas. E agora estava justamente atrasado para outra aula. Tinha aulas de Português custeadas pela ABB todas as segundas, quartas e sextas, às 19 horas. As aulas eram no Berlitz. Nesses dias, saía do escritório por volta das 17 horas e chegava ao hotel entre 18h e 18h20, dependendo do trânsito. Naquele dia específico, o trânsito esteve muito lento devido a uma caminhão que havia se espatifado contra um poste, na altura da 132 Escola de Engenharia do Cefet. Chegou ao hotel às 18h30 e tomou uma rápida ducha. Consultou o armário, agora cheio de roupas de grifes famosas brasileiras ou internacionais. Lembrou que uma das professoras era muito bonita, uma tal de Raquel. Não sabia qual seria o professor do dia. Deu de ombros: Esse era o método Berlitz, não ter um professor fixo. Se tivesse, escolheria a Raquel. Gostava quando ela olhava fixamente para a sua boca tentando fazer- lhe emitir o “ão”. “Ão” de João. Não conseguia pronunciar certo. Ele achava que conseguia, mas ela o fazia repetir. Quase todas as aulas. Gostava do nome João. Talvez se tivesse um filho colocasse o nome de João. Por via das dúvidas, escolheu uma calça bege e uma camisa azul-escuro. “Uma combinação clássica, não tem como errar”. A camisa era nova, nunca havia usado. A ABB devia gastar uma fortuna com lavanderia. Mas ele achava a lavanderia ruim. As roupas estragavam fácil. Patrícia somente comprava roupas caras para ele, de qualidade. Mesmo assim, com pouco uso, elas perdiam a cor, o caimento. Era a única coisa que não gostava no hotel. De resto, não tinha queixas. Gostava de morar lá. Tinha uma suíte com sala de estar e uma pequena cozinha. Raramente cozinhava. Durante os finais de semana, costumava almoçar no Shopping 5ª Avenida, que ficava a dois quarteirões do hotel. Comia comida a quilo, já achava a comida brasileira mais palatável. Ou pelo menos agora já identificava melhor aquilo de que gostava. Já entendia bem melhor os programas jornalísticos, ainda mais quando acompanhados de imagens. Rádio ainda achava muito difícil. Entendia melhor as palavras, o ritmo, a entonação. O que antigamente era 133 um “blá blá blá”, agora já era um “blá blá blá palavra blá blá palavra”. Quando estava sozinho é que realmente notava grandes mudanças. Ser capaz de distinguir palavras, estando dentro de um contexto já era suficiente para assegurar a comunicação. Por exemplo, quando chegara ao Brasil, sempre ficava perdido ao final de uma refeição. Um garçom lhe perguntava “o senhor está satisfeito?”; o outro “o senhor deseja o cheque?”; o outro “quer pedir mais alguma coisa?”; ou então “o senhor aceita café?”. Eram muitas variáveis e, inclusive, diferenças de pronúncia, dependendo da pessoa. Nunca entendia nada. Agora, já conseguia distinguir as palavras “cheque”, “café”, “satisfeito”. E sabia responder “eu satisfeito”, “eu café sem açúcar”, “eu a conta”. Era um grande progresso. Nesses dias de aula, encontrava-se com Patrícia na porta do Berlitz. Eles se viam também durante os finais de semana – quase sempre ela ficava no hotel de sexta à noite até domingo. Os pais dela pareciam gostar muito dele. Ficavam satisfeitíssimos toda vez que ele os visitava, geralmente nos domingos para o almoço. Eles o recebiam na sala, com muita pompa. Axel notou os móveis muito limpos e muito novos. Patrícia contou que a sala era reservada para as visitas. Geralmente os móveis ficavam cobertos com uma capa. Os móveis já tinham quase 20 anos, mas nem ela nem a irmã, quando crianças, podiam brincar ou sentar neles. As cortinas ficavam sempre fechadas para o sol não estragar os móveis. No primeiro domingo, a mãe de Patrícia veio com um livro grande de receitas com fotos. Ela mostrava as fotos e perguntava “ok” sinalizando o polegar para cima. Axel notou que esse gesto era muito 134 comum. Aprendeu a fazê-lo e agora tinha mania de, para tudo, dar o sinal de que estava bom, ou que ele estava bem, ou que havia gostado. Naquele dia a mãe apontava, Axel fazia sinal que sim, polegar para cima, ou não, polegar para baixo. Era um livro de receitas brasileiras. Mais de 80% do livro recebeu o polegar para baixo. Naquele primeiro domingo, a mãe havia preparado uma típica refeição. “Comida mineira”, todos diziam, polegar para cima e cara de satisfação. Axel voltou para o hotel com fome. No almoço seguinte, alguns domingos depois, a mãe havia feito uma das únicas receitas que havia recebido o polegar para cima. Fez também uma coisa especial, com um nome muito estranho: pão de queijo. Já havia comido isso antes e não gostara. Mas, agora, esses eram saídos do forno e eles colocavam um queijo cremoso dentro, ou um presunto. Dessa vez, Axel comeu o tal pão e colocou o polegar bem pra cima. Nesse mesmo domingo, a mãe trouxe um outro livro, esse com receitas mais internacionais. A mãe, que na verdade era praticamente uma Patrícia 25 anos mais velha, parecia muito pragmática. Ralhava com a filha sempre que Axel fazia a menor menção de querer algo: “Patrícia, não tá vendo que seu namorado quer água, corre lá minha filha, serve ele”, ou “Patrícia, homem se pega é pela boca, põe mais batata para ele que ele gostou”. Patrícia tinha uma irmã. Ela era mais nova, devia ter uns 25 anos. Chamava-se Petúnia. Apesar de mais nova, Petúnia parecia bem mais velha. Tinha a mesma beleza da irmã, mas era como se fosse uma cópia desbotada. Tinha uma filha de 5 anos. Axel entendeu que ela tinha sido casada. O marido batia nela. Patrícia contou-lhe, 135 fazendo gesto de quem bate em alguém com um chicote. Ela morava em alguma outra cidade e, um dia, cansou de ser maltratada. Fez uma mala para si, outro para a filha e pegou um ônibus para Belo Horizonte. O marido ligou uma vez para saber se ela estava lá. Queria ter certeza. Talvez porque, se ela tivesse morrido, ele teria direito a algum benefício, algum tipo de previdência. Não sendo esse o caso, ele simplesmente desligou sem nem falar com ela. Nunca mais havia visto a filha, ou falado com ela. O patriarca da família falava pouco. Às vezes, parecia apenas assistir a tudo, calado. Ou então, distante. No seu mundo próprio. Assim que o almoço terminava ligava a televisão que ficava bem ali na sala de jantar. “Naturalmente não poderia ficar na sala de visitas, já que a sala nunca era usada”, ponderou Axel, que nunca tinha visto TV em sala de jantar. O pai queria assistir esporte e ficava apertando os botões do controle remoto, que estava embalado em um plástico para não estragar. Sim, ele queria a felicidade das filhas. Mas também se sentia um pouco enojado com a facilidade com que sua esposa havia jogado pela janela todos os princípios assim que a filha apresentou o namorado. Até então, haviam seguido à risca os preceitos da “tradicional família mineira”, isto é, fingir não ver e não saber o que estava acontecendo. Cabiam às filhas esconder sua vida sexual. Telefonavam, à noite, contando que passariam a noite na casa de colegas. Ou que iriam para um retiro com uma turma da escola. Eles fingiam acreditar. Tudo dentro do figurino, como tem que ser. A filha mais nova casara, de branco, véu e grinalda na igreja. O marido nunca passara uma noite com ela antes 136 de casar, pelo menos oficialmente. Mas com esse gringo, a coisa mudou completamente. A filha dormia, descaradamente, na casa dele. E com aprovação da mãe. Uma vez, ele tentou se opor e a mãe falou: “Tomé, você tá maluco? Não tá vendo que a Patrícia tirou a sorte grande na loteria? Que um homem desses caiu do céu? Ela já está com 30 anos, eu já tinha perdido as esperanças de ela se casar bem. Já tava torcendo para ela pelo menos não pegar um muito pobre. Você lembra do último namorado? Nem carro ele tinha. Ela vinha lá do ponto de ônibus sozinha à noite, você sabe como aqui é perigoso, a gente mora perto de uma favela, pelo amor de Deus. Agora ela arrumou um que, quem sabe, pode até levá-la para conhecer a Europa. Europa! Já imaginou? Quem sabe até leva a gente também. Portanto, você fica quieto no seu canto. Se ela falar que vai dormir na casa dele é porque vai e pronto. Ninguém, na família, no prédio, tem nada a ver com isso. Aliás, já até ouvi uns comentários aqui no prédio. Aquela enxerida do 303, a Anália. Outro dia veio com uma conversa do tipo ‘tenho visto sua filha tão pouco, ela ainda está de namoro com aquele gringo?’. Sabe o que é isso? Inveja. Olho gordo. Porque a filha dela, dia desses, tava de barriga. Depois a barriga sumiu. Ela disse que a filha emagreceu. Emagreceu aqui ó. Abortou. Ela tava sempre lá embaixo com o porteiro. Vai ver ficou grávida dele. Aquele porteiro magrelo, feioso, que não tem nem onde cair morto. Agora ela vem falar alguma coisa da minha filha? Tomé, levanta a mão pro céu e essa bunda da cadeira que hoje eles vêm almoçar aqui. E se eles falarem que querem tirar um cochilo depois do almoço eu vou mandar eles pro nosso quarto 137 e você vai fazer cara boa. E podem fechar a porta! Entendido? E anda logo que estou atrasada para fazer as tais almôndegas que ele disse que gosta. Porque da vez passada ele não comeu nada. Não vai ser por causa da minha comida que a Patrícia vai deixar de pegar esse homem!” Axel, na verdade, pouco se importava com a comida de domingo dos pais. Não gostava muito dessas visitas. Achava-as arrastadas, lentas. Demoradas. Davam sono. Queria poder chegar, comer e ir embora. Não tinha muito a falar. Em sua defesa, podia dizer que faltava vocabulário. Patrícia ficava discutindo, o tempo inteiro, com a mãe e a irmã. Pareciam brigar por qualquer coisa. Depois entendeu que não estavam brigando, era o jeito delas mesmo. Interessava-se, sim, em comer Patrícia. Depois de quatro meses ainda sentia o mesmo tesão do início. E ela sempre o surpreendia. Ela já sabia que ele quase nunca gozava mais de duas vezes na mesma noite, então ela cuidava para extrair o máximo dele. Já tinha usado vela quente, bala Hall’s, chá quente, chá gelado. Uma pluma. Talco com sabor, perfumes, incensos, lubrificantes. Ela sempre tinha ideias novas. Ele lhe dava dinheiro, ela voltava do sex shop com novidades. Preferia não ir, porque gostava do elemento surpresa. Ela já o havia vendado. O algemado na cama. E o melhor de tudo era que se ele estava cansado, ela se satisfazia sozinha usando um dos três vibradores que tinham comprado. Patrícia estava convencida que o momento era dela. Desde o primeiro encontrou notou que Axel era ruim de cama. Não tinha o entusiasmo, a energia dos melhores amantes que tinha tido. 138 Nem mesmo dos piores, para ser sincera. Não conseguia manter a ereção por muito tempo. Mas sabia que ela tinha sido a melhor mulher que ele já tinha encontrado. Então, se era sexo que ele queria, era sexo que ela lhe daria. Comprava revistas masculinas, principalmente Ele&Ela. Lia a seção Fórum. Tirava muitas ideias de lá. Já tinha rodado todos os sex shops de Belo Horizonte. Sabia que, um dia, seu repertório chegaria ao fim. Quando isso acontecesse, restaria a ela dar uma coisa que tinha certeza que ele nunca tinha tido: “atrás”. A preferência nacional. Já tinha feito antes. Não gostava. Aliás, detestava. Mas, se fosse necessário, teria de fazê-lo. “Ninguém consegue nada sem sacrifício”, pensou. Em breve, talvez o convencesse a parar de usar camisinha. Isso, além de também em si ser uma novidade, poderia abrir caminho para outras possibilidades. Ela teria de tomar pílula. “O problema”, disse para si mesma, “é que pílula é tão fácil de a gente esquecer de tomar” e, como se fosse personagem de uma novela, piscou o olho para si mesma e riu. * * * Aquele semestre que começou tão promissor evoluiu rapidamente para uma não-promessa. Muito estudo. Por conta até das dificuldades da língua, viu-se tendo de se esforçar mais do que os colegas. Matérias como “Composição I” tiravam-lhe o sono. Aquele tipo de escrita era algo que nunca havia feito na vida. Eram os tais dos “papéis de pesquisa”. Muito diferentes do estilo que havia aprendido 139 no Brasil. Para os colegas de classe, aquilo era mera extensão do que haviam aprendido no ginásio. Para Marcos, era como se ele tivesse de aprender cálculo sem antes ter aprendido multiplicação. Teve de correr atrás. Engrenou uma boa amizade com Eva. No início, queria comê- la. Depois aprendeu que ela era católica. O que era uma coisa diferente na Suécia, já que quase ninguém era católico lá. Ele também era católico. Mas ele era católico brasileiro. Aquele país em que o pessoal vai à missa de manhã e ao terreiro de candomblé à tarde: “Mal não faz, né?”. Ela afirmou que não era virgem, mas que somente acreditava no sexo com amor. Nada de sexo casual. Morava na universidade. Talvez pelo fato de Marcos ter carro, eles começaram a sair. Fizeram os tradicionais programas de turista em Houston. Visitar a Nasa. Ir ao Astrodome, assistir a um jogo de beisebol dos Astros. Repetiram o passeio ao Astrodome – “o maior estádio coberto com ar-condicionado do mundo” – para assistir a um show de rodeio. Foram ao shopping Galleria para comprar absolutamente nada. É um shopping center grande, só de lojas de grifes famosas: Prada, Versace, Escada, Fendi. Jóias na Tiffany. Neiman Marcus, uma das lojas de departamento mais tradicionais dos Estados Unidos. Na parte de baixo, um enorme rinque de patinação no gelo pode ser avistado de qualquer um dos andares. Foram a uma boate country. Ambos tinham menos de 21 anos, então não receberam a estampa no punho que daria direito a comprar bebida alcoólica. A noite terminava às 2 da manhã, quando a maioria dos bares fechava. Podia ser pior. Marcos aprendeu que em Dallas 140 alguns distritos são os chamados distritos “secos”. Neles, não há venda de bebidas alcoólicas. Visitaram Montrose, a parte gay de Houston com um monte de lojas estilo brechó, casas antigas. Um enorme contraste com o resto da cidade, que era bem moderna e também machista, com seus caubóis urbanos andando nas ruas de chapelão, mexicanos bigodudos com cintos de fivelas redondas imensas segurando a pança e se deslocando nas enormes pickups. A maioria não vai nem na esquina se não for de carro. Desprovidos do lubrificante social, o álcool, o relacionamento de Marcos e Eva seguia cândido. Ela, um dia, confidenciou-lhe que estava gostando muito dele, mas que em breve iriam seguir rumos diferentes. Ela retornaria à Suécia e ele, eventualmente, ao Brasil. Não haveria futuro para os dois. Naquela noite, eles foram ao Benningan’s, um restaurante barato que servia comida decente. Tinha uma atmosfera jovial, estudantil. Ela havia conseguido a identidade de uma colega – as duas tinham uma certa semelhança. Talvez pelo álcool, foi a primeira vez que se beijaram. Um beijo terno. Depois ele levou-a de volta para a universidade e voltou para a casa. A boa notícia no setor alcoólico era que Ruth e Bob mostraram- se bastante liberais em supri-lo com cerveja. Sempre que saíam a algum restaurante, no mínimo uma vez por semana, eles compravam-lhe cerveja ou margarita. Bob mantinha um constante suprimento de cerveja na geladeira. Comprava logo de uma vez 10 caixas de uma marca barata chamada Olympia. Imprevisivelmente, alguns finais de semana Bob resolvia fazer uma grande quantidade da sua especialidade: chili de cerveja. O chili, no caso, tanto 141 serve para denominar uma pimenta praticamente inexistente no Brasil, mas imprescindível para fazer qualquer prato mexicano, como também é o nome de uma iguaria típica do Texas: aquele feijãozinho de caubói típico de filmes de faroeste. Uma mistura de carne moída com feijão. Nessas ocasiões, o processo de preparação começava por volta das 11 horas não ficando pronto antes das 4 da tarde. Bob aproveitava para fazer uma quantidade suficiente para satisfazer um pequeno exército. Nessas ocasiões Marcos invariavelmente comia chili todos os dias, almoço e jantar. Fazia isso por quase uma semana. Era a dieta do chili. O resto do chili era congelado para quando estivesse disposto a comer chili novamente, o que acontecia no próximo mês. A limpeza da casa era um caso à parte. Bob mostrou-se uma pessoa extremamente desorganizada. Os dois dias que ele passava na casa eram suficientes para que espalhasse uma imensa quantidade de jornais, revistas, sapatos, meias e outras peças de vestuário por todo o lugar. Felizmente, a cada duas semanas uma mexicana com seus 50 anos que tinha a chave da casa passava o dia colocando ordem e limpando. O frio, que foi intenso, mas que somente havia durado dois meses, já dava lugar a um tremendo calor. A grama do jardim de trás e da frente da casa crescia em ritmo assustador. Uma tropa de mexicanos cuidava de colocar a grama em perfeitas condições a cada duas semanas ou até mesmo toda semana, dependendo da quantidade de chuva. Muito raramente, Bob ou Ruth pediam a Marcos um favor. Uma ocasião Bob pediu que Marcos entregasse um envelope do outro lado da cidade. Marcos adorava essas ocasiões. 142 Muitas vezes queria demonstrar sua gratidão, seu apreço, porém nenhum dos dois eram pessoas de muitos beijos ou abraços. Ou de muitas palavras, de jogar muito confete. Restava-lhe retribuir com ações. Tratava de nunca deixar passar uma dessas raras oportunidades. Largou tudo e foi lá entregar o tal documento. Assim que começou os estudos Marcos conseguiu um emprego como monitor do laboratório de informática. Além da receita extra, o emprego lhe conferia maiores oportunidades de encontrar pessoas novas. Por volta de abril uma garota, Cherie, convidou-o para assistir ao ensaio de uma peça estudantil. Marcos aceitou o convite. A peça era horrível, os atores, péssimos. Não seria desta vez que a Universidade de Houston produziria um novo Marlon Brando. Marcos não sabia se estava atraído por Cherie. Sabia que, desde que chegara a Houston, atravessava um período de vacas magras. Eva não passou do beijo. Talvez nunca passasse. À sombra desta análise, concluiu que estava sim, atraído por Cherie. Ela o convidou, terminado o ensaio, para comer uma pizza. Descobriram, durante a pizza, que ela morava para o mesmo lado de Houston que ele. O ensaio havia terminado cedo, ainda não era 21 horas quando estavam prontos para ir para casa. Marcos convidou-a para uma esticada na casa dele. Mal entraram em casa, rolou o beijo ali na sala mesmo, em pé. Ela mostrou-se interessada em conhecer o quarto. Marcos não contava com essa reação. Para ele isso era novidade. Com as namoradas de antes, tudo havia levado tempo. No caso de encontros casuais, que não eram muitos já que tinha apenas 19 anos, o serviço de quarto dos 143 motéis encarregava-se de suprir qualquer necessidade. Na verdade, contava com a tal Cherie falar “não” em algum ponto. “Pelo visto ela não vai poder falar nada agora, já que está com a boca ocupada”, ele pensou. Ela já estava sem sutiã, mas ainda de calça jeans, sentada na cama. Ele estava de pé, calças arriadas. Ela movia a cabeça ritmadamente e usava também as mãos. Ele deu um passo para trás, não queria gozar ainda. Aproveitou para tirar as calças completamente. Jogou tudo num canto do quarto. Na cama, Cherie também se despiu. Mostrava o sexo. Tinha muitos pêlos louros. Os peitos eram pequenos. O rosto dela era redondo. Ela deitou-se na cama e arrastou-se para o outro lado, abrindo espaço para Marcos. O lado esquerdo da cama ficava encostado na parede. A cama ficava no canto do quarto. Uma cômoda ficava no outro canto do quarto. Ao pé da cama, havia uma porta que levava a um pequeno guarda-roupa estilo americano, um minúsculo quarto onde as roupas ficam penduradas. Marcos subiu na cama de joelhos, colocando o membro ereto na altura da boca de Cherie. Deitada de barriga para cima, ela fazia sexo oral nele de forma especial, com muita ênfase na parte de baixo. Ele sabia que garotas não gostavam de surpresas nesse momento: quando sentiu o orgasmo chegando ele avisou, dando-lhe tempo para fazer como bem quisesse. Para sua surpresa, ela ergueu a cabeça um pouco, de forma a conseguir abocanhar uma maior parte e aumentou o ritmo. Ele despejou aquilo que parecia ser um rio acumulado de meses de frustração sexual e prazer solitário. Foi a primeira vez que isso lhe acontecia. Aquilo anunciado nos classificados como 144 “oral até o final”. Adorou essa nova sensação. Como era de praxe naquela idade, o membro nem sequer se alterou. Ela engoliu e voltou à carga. Ele deitou-se na cama, ela veio por cima. Ajoelhouse na frente dele e iniciou um novo oral. Desta vez com um ângulo diferente, nova técnica. Ele gostou do visual, aproveitou para tocar-lhe os seios. Sentiu que iria novamente explodir, avisou à moça que passou a tentar engolir ainda mais o membro. Gozou de novo. Ela engoliu e recomeçou o oral, ele havia esmorecido a 80% da potência, mas de novo retornou à carga total quase instantaneamente. Ela parou olhou para ele e disse: “É sempre assim?” Rindo, subiu na cama preparando-se para cavalgá-lo. Marcos deu um salto para cima, sentando na cama. “Não podemos fazer isso sem camisinha”, ele falou. “O problema é que eu não tenho nenhuma”. Ela, sem dizer uma palavra, deitou-se ao seu lado. Começaram a se beijar, ele começou a masturbá-la com os dedos e beijar-lhe os diminutos seios. Ela gemia. Gemia muito. Quando sentiu que estava perto, Marcos começou a fazer carícias com a boca. Ela gozou rápido. Dormiram um pouco. Ela o acordou, mais ou menos uma meia hora depois. Tinha de ir embora. Deu-lhe um rápido beijo, despediram-se. Talvez se encontrassem outro dia. Marcos foi dormir. Havia quebrado o encanto. Inaugurado a casa, a cama. “Agora as coisas vão engrenar”, ele pensou. No dia seguinte, uma quinta-feira, Marcos chegou bem cedo à escola. Era seu dia de abrir o laboratório de informática. Detestava esses dias. Ainda estava sonolento quando encontrou Cherie na porta do laboratório de informática. Aparentemente ela tinha 145 de digitar um trabalho. Ele abriu o laboratório, sentou-se na mesa que ficava perto da porta. Aproveitaria o tempo para finalizar um trabalho. Cherie, obviamente, não estava com tanta pressa porque puxou uma cadeira e pôs-se a conversar com ele. Baixinho, perguntou se ele não queria aproveitar a tarde livre. Marcos ouviu, alto e claro, os sinos de alarme tocarem em sua cabeça. Ignorouos. Combinaram de se encontrar em um Taco Bell que ficava próximo à casa de Marcos. Quando chegou ao Taco Bell, já havendo previamente parado no Wallgreens e adquirido um enorme suprimento de camisinhas de dar inveja a um marinheiro, Cherie já estava lá. Marcos adorava o Taco Bell, um McDonald’s de comida mexicana. Era novidade para ele. Comida mexicana, ao contrário do que seria de se esperar, era muito diferente da comida brasileira. Nunca havia experimentado tacos, fajitas, burritos, tostadas. Marcos comia muito. Tinha a capacidade de comer como lutador de sumo, mas nunca engordava. Era magro, tinha o metabolismo acelerado. Até magro demais. Queria ter mais músculos, inclusive já havia tentado treinar musculação. Treinou pesado, seis meses. Resultado zero. Desistiu. Naquele dia, alimentou-se bem. Ia precisar da energia. Ao terminar, pediu Cherie que esperasse um pouco. Tinha de ir ao escritório de advocacia de Bob e Ruth, que ficava do outro lado da rua. Por isso havia escolhido justamente aquele Taco Bell. Ela pediu para ir junto. Não tinha nada contra. No caminho, ela pegou na mão dele. Ele, por causa dos sinais que constantemente apitavam na sua cabeça, preferiu soltá-la. Não queria parecer um casal. Talvez fosse porque ela, durante o almoço, mencionou 146 que havia sonhado que tinham tido um filho. Naquela hora, arrependeu- se de não ter comprado a camisinha modelo super-forte. Pensou em dar uma desculpa, mas os hormônios já estavam à solta na circulação sanguínea. O comando do corpo, já desde a manhã no laboratório, estava entregue à cabeça de baixo. No escritório, pegou a nova máquina de café que Bob havia comprado. A antiga havia pifado, dias antes. Esse era um modelo profissional. Ao colocar água na máquina, ela imediatamente já começava a fazer o café. O que se mostrou mais tarde ter sido uma má escolha. A tal cafeteira tinha de ficar ligada, constantemente, à energia. Possuía um recipiente que mantinha a água quente, já na temperatura ideal para fazer café. Era realmente para uso profissional. Não gostou quando Cherie fez questão de entrar no escritório, em vez de ficar na sala de espera. Pegou a máquina e saiu rápido de lá, não sem uma ponta de arrependimento. “Devia ter deixado para pegar outro dia, mas Bob talvez apareça amanhã e queira tomar café. Foda isso. Algo me diz que vou me arrepender.” Voltaram a pé para o Taco Bell, pegaram os respectivos carros e foram para a casa de Marcos. Ela nunca falava não. Gemia muito alto, gritava. Principalmente quando estava de quatro. Um escândalo total – quem tivesse passando na rua ouviria. Fez uma nota mental para evitar a posição cachorrinho no futuro. Passaram a tarde, a noite, a madrugada na cama, com pausa para uns cochilos e sanduíches. De madrugada, ela reclamou que estava muito esfolada. Que doía. Ele, então, tentou penetrá-la atrás. Ela aceitou, mas Marcos não sabia como fazer e depois de um tempo tentando ela reclamou que doía 147 muito. Ele desistiu. Tomou uma ducha. Voltou para o quarto, ela dormia. Ele a acordou, e como ela nunca dizia não, e lá em baixo estava ardendo, o jeito foi abocanhar. Por duas vezes seguidas. De manhã, ela já devia estar recuperada porque antes de ir embora ele ainda comeu-a uma última vez. No finalzinho notou que ela sofria um pouco. Mas ela não pediu para parar. Ele contou que precisava ir ao escritório, queria que ela fosse embora. Ela sugeriu ir com ele. Ele disse que demoraria, ela falou que esperaria. De novo os sinais. O controle agora, com os hormônios em balanço, retornara à cabeça superior. Marcos insistiu e, finalmente, com muito custo, Cherie tomou o rumo de casa ou sabe-se lá qual rumo tomou. Na verdade, Marcos só teria aula à tarde. Aproveitou para dormir, recuperar o sono perdido. Chegando à universidade, passou rápido pelos corredores. Não foi aos lugares que costumava, como o laboratório. Após a aula, foi comprar umas roupas na Target. No caminho de casa, já bem à noite, viu a luz do escritório de Bob e Ruth acesa. Resolveu passar por lá. Ruth costumava chegar tarde ao trabalho, geralmente por volta das 11 da manhã. Por conta disso ela sempre trabalhava até tarde, não raro 10 ou 11 da noite. Ruth estava de mau humor. Disse que “aquela mocinha loura que veio com você aqui ontem apareceu na recepção. Perguntou se você estava. Como não estava ela resolveu te esperar. Deve ter ficado umas três horas na recepção. Importunou a secretária com perguntas.”. Marcos ficou vermelho, azul, amarelo. A última coisa que precisava era de entrar em conflito com Ruth ou Bob. Entraria em conflito com qualquer pessoa no mundo, menos com aqueles 148 dois. Pediu mil desculpas. Ruth estava realmente de mau humor e disse apenas “espero que isso não aconteça mais”, acrescentando que tinha muito trabalho a fazer, meio que botando ele para fora da sala. Marcos pensou em telefonar para a casa de Cherie dali mesmo do escritório, mas resolveu que faria isso de casa. Às vezes Bob aparecia às sextas, talvez ele o convidasse para uma cerveja. Ele gostava de jogar “shuffleboard”, havia sido campeão do esporte no tempo de estudante. O “shuffleboard” era jogado em uma mesa estreita, comprida e muito lisa, e o objetivo era empurrar um disco que ficasse o mais próximo possível da beirada do lado oposto ao lançamento, porém sem cair, já que ao final da mesa havia uma pequena vala. Outro detalhe importante é que como os jogadores se alternavam, mesmo se um tivesse colocado o disco na área de mais pontos, a contagem somente era feita ao final do jogo. Dessa forma havia também um componente de estratégia, porque um jogador podia também empurrar o disco com muita força com o objetivo de tirar os discos do adversário do tabuleiro. O melhor do jogo era que Bob se encarregava de pedir as cervejas, sem limite de consumo. Geralmente eram bares com mesas de sinuca, frequentados por gente de chapelão de caubói. Aqueles mesmos que se vê em filmes, onde a freguesia é mal encarada e o ambiente é coberto de fumaça de cigarro. Nos filmes, entretanto, sempre havia uma garota bonita. Nos bares que eles iam, ali nas redondezas, as garotas bonitas talvez tivessem saído um pouco mais cedo. Algo como uns 25, 30 anos mais cedo. Aquela parte de Houston, localizada a nordeste do centro da cidade, não era 149 exatamente a mais glamurosa. Mas ainda era melhor opção do que ficar em casa, assistindo TV-sem-cabo, já que Bob, como não ficava em casa, havia optado por não ser assinante. E Marcos não queria bancar do próprio bolso. Ao chegar em casa, notou com profundo desprazer que não seria necessário telefonar. O carro dela, um carro vermelho muito feio, estava parado na porta. Marcos respirou fundo. Hormônios em cheque, sob controle. A cara de Ruth, minutos atrás, havia-lhe forjado uma determinação irredutível. Mesmo se ela estivesse na companhia de três colegas lindíssimas, estava determinado. De rabo do olho checou se ela estava sozinha ou se tinha três colegas lindíssimas consigo. Estava sozinha. “Melhor assim”, pensou. Se ela estivesse com as três colegas lindíssimas talvez ele tivesse de ser mais educado. Afinal, era sexta-feira, ele provavelmente teria de convidá-las para um drinque. Mas, ela estava sozinha. “Graças a Deus estava sozinha”. Assim que entraram, ela começou a beijá-lo e desceu a mão ao pênis. Rapidamente, ajoelhou-se, começando a abrir o cinto. Foi preciso lembrar da cara de Ruth para ter vontade de fazer que o certo prevalecesse, lembrar que sua resolução tinha de ser de titânio para fazer frente ao aço que se alojara entre suas pernas Ele levantou-a. Explicou que as coisas estavam indo muito rápidas, que eles não estavam namorando. Que não a queria como namorada, não queria ter nada sério. Que havia sido bom, mas que preferia pegar mais leve. Tinha chegado há pouco na cidade, preferia ficar solteiro e conhecer muitas pessoas novas. Além da questão da Ruth, a sede com que Cherie havia ido ao pote e o papo de 150 filhos denunciava que alguma coisa estava errada. Ela começou a chorar. Ele se manteve irredutível. Ela pediu uma chance, ele disse que não. Colocou-a para fora de casa. Fechou a porta. Nunca havia feito nada semelhante. Sentiu-se terrível, mas tinha de dar um basta na loucura. Ela não podia ser muito certa da cabeça. Ligou a TV, colocou um Tupperware com chili de um mês atrás no micro-ondas. Abriu uma Olympia. Meia hora depois, ouviu alguém batendo na porta da frente. Imaginou o pior. Abriu. Era ela. Estava lívida, chorava. Balbuciou algo como “um acidente de carro”. Não parecia machucada, não havia sangue. Murmurou isso e um segundo depois espatifou-se no chão, rígida como um pedaço de madeira. De nariz no chão. Uma pequena poça de sangue se formou no lugar. Marcos se abaixou para levantá-la, ela estava com os pés para fora da porta e o resto do corpo dentro da casa. Nesse exato instante, chega Bob e vê aquela cena insólita. Ele cuidadosamente entrou na casa tomando cuidado de não tropeçar no corpo. Marcos pensou: “É hoje que eles me mandam embora daqui”. Nessa altura ela começou a acordar e se sentou, o rosto ensanguentado. Bob olhou-a e notando que não estava morta, entrou para seu quarto. Dois minutos depois saiu novamente sem dizer uma palavra. Cherie foi ao banheiro, lavou o rosto. O sangue sumiu, era apenas da porrada no nariz. Tomou uma água. Pediu para dormir lá. Marcos perguntou onde estava o carro, ela disse que estava perto. Caminharam até o local. O carro havia caído em uma vala. Com sorte, não seria difícil tirá-lo. Foi fácil. O carro tinha tração traseira. Saiu sem grandes problemas. Provavelmente Cherie ou estava tão 151 chocada com o acontecido que não havia tentado tirá-lo ou havia, propositadamente, colocado o carro lá. O carro não aparentava nenhum dano, talvez um pequeno amassado no para-choque que vai ver já estava lá fazia anos. Conversaram um pouco. Marcos colocou- a no carro. Estava assustado também, a garota pelo visto era doida. Dessas de jogar pedra. Afinal, ninguém gritava tanto assim de quatro. Notou, pela cara de choro, que mais cedo ou mais tarde ela acabaria lhe procurando. E pior, talvez ele estivesse só e seria difícil resistir a proposta de “dar uma”. Assim, mais para evitar que ele próprio caísse em tentação no futuro, pediu, ou melhor, falou claramente que ela “nunca mais o procurasse”. Ela chorava. Cherie, então, propôs dar-lhe uma carona de volta à casa, mas ele disse preferir andar. Imaginou-se no banco do passageiro e ela jogando o carro de um despenhadeiro. Infelizmente, não tirou patente desse pensamento, e assim não recebeu nenhum crédito pela cena do final de “Thelma e Louise”: “um plágio descarado da minha ideia”, disse ao seu grande amigo Eduardo quando contou essa história. A parte do plágio era gozação, porém Marcos sempre acreditou que “ideias são vagabundas: quando você dá à luz uma, a dita nasce sua, mas não está presa a você. Ela também sai vagando por aí. Se você não toma conta, outro pega”. Vai ver realmente aconteceu isso com a cena que imaginou. Ainda mais que estava nos Estados Unidos, geograficamente próximo do Ridley Scott. Ideia ou não, sentiu-se renascer quando o carro dela desapareceu depois de três quarteirões. Imaginou que a veria novamente, mas nunca mais a viu. Dias depois, ouviu um colega dela de teatro comentar 152 com alguém no laboratório que Cherie havia trancado matrícula e se alistado no Exército. Não pode deixar de sentir um certo “orgulho”: não é sempre que mulheres desmaiam e se alistam por conta de um homem. “Tudo bem que ela era doida, mas isso não tira totalmente o meu mérito”, refletiu. 153 Junho de 1988 “Ultimatos cabeludos” estas juninas, quentão, pinga, amendoim torrado. Tudo novidade. Pessoas usando umas roupas esquisitas. Axel achava engraçado. “O mais interessante de tudo é que as danças realmente lembram danças tradicionais da Europa, mas vistas sob a perspectiva de alguém que não fala a língua e fica tentando adivinhar o que é que está acontecendo. Obviamente, isso dá margem a uma interpretação errada – o de ver e achar que é uma coisa, quando na verdade é outra. Havia concluído isso ao comparar as letras das músicas, já que conhecia a versão original. ”. Já era junho e todos diziam que faria muito frio, mas até então o tão aguardado frio não havia chegado. Estava bem mais fresco, é verdade, mas ainda quente o suficiente para aproveitar um sábado de sol. Estava indo ao Amoricana, um bar da Savassi. Era um bar relativamente simples com o diferencial que tinha uma parte grande aberta e uma afamada árvore ao centro. Sábado à tarde era concorridíssimo, dia de samba. Axel não dançava, mas sabia apreciar os corpos sarados em trajes curtíssimos rebolando bundas em coreografias sensuais. Pornográficas até, de um ponto de vista europeu. Sempre ia lá com Patrícia, que ficava atenta a todo e qualquer movimento suspeito de mulheres. Protegia-o como uma leoa protege sua presa. Depois da presa morta, claro. Protege a presa das hienas. Que ficam rondando. Dessas com roupas cada vez mais curtas, pernas cada vez mais longas. 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